Por Allan Kardec
O Monde
Illustré de 7 de fevereiro de 1863 conta o drama de família seguinte,
que comoveu, a justo título, a sociedade de Florença. O autor assim
começa a sua narração:
“Eis a história.
Ele era um velho de setenta e dois anos; ela, uma jovem de vinte. Ele a
havia esposado há três anos... Não vos revolteis! O velho conde,
originário de Viterbo, era absolutamente sem família, o que é muito
estranho para um milionário! Amália não era sem família, mas era sem
milhões! Para compensar as coisas, quase a tendo visto nascer, sabendo-a
de bom coração e de um espírito encantador, ele tinha dito à mãe:
‘Deixa-me paternalmente casar com Amália. Durante alguns anos ela
cuidará de mim e depois...’
“Fez-se o
casamento. Amália compreende os seus deveres; cerca o velho dos mais
assíduos cuidados e lhe sacrifica todos os prazeres de sua idade. Tendo o
conde ficado cego e semiparalítico, ela passava as mais longas horas
do dia a lhe fazer companhia, a fazer leitura, a lhe contar tudo o que
podia distraí-lo e encantá-lo. ‘Como sois boa, minha cara filha!’
exclamava ele muitas vezes, tomando-lhe as mãos e atraindo-a para depor
sobre sua fronte o casto e doce beijo do enternecimento e do
reconhecimento.
“Um dia,
entretanto, ele percebe que Amália se afasta de sua pessoa; que, posto
sempre assídua e cheia de solicitude, ela parece temer sentar-se a seus
pés. Uma suspeita atravessa seu espírito. Uma noite, quando ela fazia
leitura, ele lhe toma o braço, a atrai, enlaça-lhe a cintura e então,
soltando um grito terrível, cai esgotado de emoção e de cólera aos pés
da jovem! Amália perde a cabeça; lança-se para a escada, atinge o andar
superior, precipita-se pela janela e cai estatelada. O velho sobreviveu
apenas seis horas a essa catástrofe!”
Perguntarão que
relação pode ter esta história com o Espiritismo? Vê-se aí a
intervenção de alguns espíritos brincalhões? - Essas relações estão nas
deduções que o Espiritismo ensina a tirar das coisas aparentemente mais
vulgares da vida. Quando o céptico ou o indiferente não vê num fato
senão um motivo para a ironia, ou passa ao lado sem notar, o espírita o
observa e dele tira uma instrução, remontando às causas providenciais,
sondando-lhes as consequências para a vida porvindoura, conforme os
exemplos que as relações de além-túmulo lhe oferecem, da justiça de
Deus.
No fato acima
relatado, em vez de simples e agradável anedota entre ele, o velho, e
ela, a jovem, o Espiritismo vê duas vítimas. Ora, como o interesse pelos
infelizes não termina no sólio da vida presente, mas os segue na vida
futura, na qual acredita, ele pergunta se aí não há um duplo castigo
para uma dupla falta, e se ambos não foram punidos por onde pecaram. Ele
vê um suicídio, e como sabe que esse crime é sempre punido, ele se
pergunta qual o grau de responsabilidade em que incorre o que o cometeu.
Vós que pensais
que o Espiritismo só se ocupa de duendes, de aparições fantásticas, de
mesas girantes e de Espíritos batedores, se vos désseis ao trabalho de
estudá-lo, saberíeis que ele toca em todas as questões morais. Esses
Espíritos que vos parecem tão risíveis, e que, entretanto, não passam de
almas dos homens, dão a quem observa as suas manifestações a prova de
que ele próprio é Espírito, momentaneamente ligado a um corpo. Ele vê na
morte não o fim da vida, mas a porta da prisão que se abre ao
prisioneiro para restituí-lo à liberdade. Aprende que as vicissitudes da
vida corpórea são as consequências de suas próprias imperfeições, isto
é, das expiações pelo passado e pelo presente, e provações para o
futuro. Daí ele é naturalmente conduzido a não ver o cego acaso nos
acontecimentos, mas a mão da Providência. Para ele a justa sentença: A
cada um segundo as suas obras não só acha a sua aplicação apenas no
além-túmulo, mas também na Terra. Eis por que tudo o que se passa em
redor de si tem seu valor, sua razão de ser. Ele tudo estuda para disso
tirar proveito e regular sua conduta com vistas ao futuro, que para ele é
uma realidade demonstrada. Remontando às causas das desgraças que o
afligem, aprende a não mais acusar a sorte ou a fatalidade, mas a si
mesmo.
Não tendo esta
digressão outro objetivo senão mostrar que o Espiritismo se ocupa de
algo mais que de Espíritos batedores, voltemos ao nosso assunto.
Considerando-se que o fato foi tornado público, é permitido apreciá-lo,
tanto mais quanto não designamos ninguém nominalmente.
Se se examinar a
coisa do ponto de vista puramente mundano, a maior parte das pessoas
não verá nele senão a consequência muito natural de uma união
desproporcional, e atirarão no velho a pedra do ridículo como oração
fúnebre. Outros acusarão de ingratidão a jovem senhora que traiu a
confiança do homem generoso que queria enriquecê-la. No entanto, ela tem
para o espírita um lado mais sério, porque o espírita aí busca um
ensinamento.
Perguntar-nos-emos,
então, se na ação do velho não havia mais egoísmo que generosidade ao
vincular uma moça quase criança à sua caducidade, pelos laços
indissolúveis que podiam conduzi-la à idade em que se deve antes pensar
no descanso do que em gozar do mundo; se impondo-lhe esse duro
sacrifício, não era fazê-la pagar bem caro a fortuna que lhe prometera.
Não há verdadeira generosidade sem desinteresse. Quanto à jovem, ela não
podia aceitar esses laços senão com a perspectiva de vê-los quebrados
em breve, pois nenhum motivo de afeição a ligava ao velho. Havia, pois,
cálculo de ambos os lados, e esse cálculo foi frustrado. Deus não
permitiu que nem um nem o outro o aproveitassem. A um infringiu a
desilusão, ao outro a vergonha, que os mataram a ambos.
Resta a
responsabilidade do suicídio, que jamais fica impune, mas que muitas
vezes encontra circunstâncias atenuantes. A mãe da jovem, para
encorajá-la a aceitá-lo, havia dito: “Com esta grande fortuna farás a
felicidade do homem pobre que amares. Enquanto esperas, honra e
respeita, durante o que lhe resta de vida, esse grande coração que quis
fazer-te sua herdeira.” Era tomá-la pelo lado sensível, mas, para gozar
dos benefícios desse grande coração, que teria sido muito maior se a
tivesse dotado sem interesse, seria preciso especular sobre a duração de
sua vida. A moça errou ao ceder, mas a mãe errou mais em excitá-la, e é
ela que incorrerá na maior parte da responsabilidade do suicídio da
filha.
É assim que
aquele que se mata para escapar à miséria é culpado pela falta de
coragem e de resignação, mas muito mais culpado ainda é aquele que é a
causa primeira desse ato de desespero. Eis o que o Espiritismo ensina,
pelos exemplos que põe sob os olhos daqueles que estudam o mundo
invisível.
Quanto à mãe,
sua punição começa nesta vida, a princípio pela morte horrível da filha,
cuja imagem talvez venha persegui-la e enchê-la de remorsos, depois
pela inutilidade, para ela, do sacrifício que ela provocou, porque tendo
falecido o marido seis horas depois de sua mulher, toda a sua fortuna
vai para os colaterais afastados, e ela nenhum proveito terá.
Os jornais
estão cheios de casos de todo gênero, louváveis ou censuráveis, que
podem oferecer, como este que acabamos de relatar, assunto para estudos
morais sérios. É para os espíritas uma mina inesgotável de observações e
instruções. O Espiritismo lhes dá os meios de aí descobrirem o que se
passa desapercebido para os indiferentes e ainda mais para o céptico,
que geralmente aí não vê senão o fato mais ou menos picante, sem lhe
procurar nem as causas nem as consequências. Para os grupos, é um
elemento fecundo de trabalho, no qual os Espíritos protetores não
deixarão de ajudar, dando a sua apreciação.
Fonte: Revista Espírita, fevereiro de 1864 - Um drama íntimo
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