REVISTA ESPÍRITA
Jornal de Estudos Psicológicos publicada sobre a direção de Allan Kardec
julho de 1862
Não
há ninguém que não tenha notado o quanto as coisas mudam de aspecto,
segundo o ponto de vista sob o qual são consideradas; não é somente o
aspecto que se modifica, mas ainda a própria importância da coisa. Que
se coloque no centro de um meio qualquer, fosse ele pequeno, parece
imenso; que se coloque fora, parecerá todo outro. Tal que vê uma coisa
do alto de uma montanha a acha insignificante, enquanto que, na base da
montanha, lhe parece gigantesca.
Isto
é um efeito de ótica, mas que se aplica igualmente às coisas morais.
Ficai um dia inteiro no sofrimento, ele vos parecerá eterno; à medida
que esse dia se afasta de vós, vos admirais de ter podido vos desesperar
por tão pouco. Os pesares da infância têm também sua importância
relativa, e, para a criança, são todos tão amargos quanto os da idade
madura. Por que, pois, nos parecem tão fúteis? Porque não o somos mais,
ao passo que a criança o é inteiramente, e não vê além de seu pequeno
círculo de atividade; ela os vê do interior, nós os vemos do exterior.
Suponhamos um ser colocado, em relação a nós, na posição em que estamos
em relação à criança, ele julgará nossos cuidados do mesmo ponto de
vista, e os achará pueris.
Um
carreteiro é insultado por um carreteiro; eles discutem e se batem; que
um grande senhor seja injuriado por um carreteiro, com isso não se
crera ofendido, e não se baterá com ele. Por que isto? Porque se coloca
fora de sua esfera: Crê-se de tal modo superior que a ofensa não pode
atingi-lo; mas que ele desça ao nível de seu adversário, que se coloque,
pelo pensamento, no mesmo meio, e se baterá.
O Espiritismo nos mostra uma aplicação desse princípio, se bem que de outro modo importante em suas conseqüências. Faz-nos ver a vida terrestre por aquilo que ela é, nos colocando no ponto de vista da vida futura;
pelas provas materiais que dela nos fornece, pela intuição límpida,
precisa, lógica que dela nos dá, pelos exemplos que coloca sob nossos
olhos, e a ela nos transporta pelo pensamento: é vista, é compreendida;
não é mais essa noção vaga, incerta, problemática, que se nos ensina do
futuro, e que, involuntariamente, deixa dúvidas; para o Espírita, é uma certeza adquirida, é uma realidade.
Faz mais ainda: mostra-nos a vida da alma, o ser essencial,
uma vez que é o ser pensante, remontando no passado a uma época
desconhecida, e se estendendo indefinidamente no futuro, de tal sorte
que a vida terrestre, fosse ela de um século, não é mais do que um ponto nesse longo percurso.
Se a vida inteira é tão pouca coisa, comparada à vida da alma, que
serão, pois, os incidentes da vida? E, no entanto, o homem, colocado no
centro desta vida, com ela se preocupa como se devesse durar sempre;
tudo toma para ele proporções colossais: a menor pedra que o choque lhe
parece um rochedo; uma decepção o desespera; um fracasso o abate; uma
palavra coloca-o furioso. Sua visão, limitada ao presente, ao que o toca
imediatamente, lhe exagera a importância dos menores incidentes; um
negócio não realizado lhe tira o apetite; uma questão de precedência é
um negócio de Estado; uma injustiça coloca-o fora de si. Conseguir é o
objetivo de todos os seus esforços, objeto de todas as suas combinações;
mas, para a maioria, o que é conseguir? É, se não se tem do que viver,
se criar, por meios honestos, uma existência tranqüila? E a nobre
emulação de adquirir talento e desenvolver sua inteligência? É o desejo
de deixar, depois de si, um nome justamente honrado, e realizar
trabalhos úteis para a Humanidade? Não; conseguir, é superar seu
vizinho, eclipsá-lo, é afastá-lo, transtorná-lo mesmo, para se colocar
em seu lugar; e, por esse belo triunfo, do qual a morte não deixará
talvez gozar vinte e quatro horas, que de cuidados, que de tributações!
Quanto de gênio mesmo dispensa, algumas vezes, que teria podido ser mais
utilmente empregado! Depois, quanto de raiva, quanto de insônias se não
se triunfa! Que febre de ciúme causa o sucesso de um rival! Então,
prende-se à sua má estrela, à sua sorte, à sua chance fatal, ao passo
que a má estrela, o mais freqüentemente, é a imperícia e a incapacidade.
Dir-se-á, verdadeiramente, que o homem toma a tarefa de tornar tão
penosos quanto possível os poucos instantes que deve passar sobre a
Terra, e dos quais não é senhor, uma vez que o dia de amanhã jamais está
assegurado.
Quanto
todas essas coisas mudam de face, quando, pelo pensamento, o homem sai
do estreito vale da vida terrestre, e se eleva na radiosa, esplêndida e
incomensurável vida de além-túmulo! Quanto então, toma em piedade os
tormentos que se criou à toa! Quanto, então, lhe parecem mesquinhas e
pueris as ambições, os ciúmes, as suscetibilidades, as vãs satisfações
do orgulho! Parece-lhe da idade madura considerar as brincadeiras da
infância; do alto de uma montanha, considerar os homens no vale.
Partindo deste ponto de vista, torna-se, voluntariamente, o joguete de
uma ilusão? Não; ao contrário, está na realidade, na verdade, e a
ilusão, para ele, é quando vê as coisas do ponto de vista terrestre. Com
efeito, não há ninguém sobre a Terra que não ligue mais importância ao
que, para ele, deve durar muito tempo, do que ao que não deve durar
senão um dia; que não prefere uma felicidade durável a uma alegria
efêmera. Inquieta-se pouco com um desagrado passageiro; o que interessa
acima de tudo é a situação normal. Se
pois, eleva-se seu pensamento de modo a abarcar a vida da alma,
forçosamente, chega-se a esta conseqüência, de que assim se percebe a
vida terrestre como uma estação momentânea; que a vida espiritual é a vida real,
porque ela é indefinida; que a ilusão é a de tomar a parte pelo todo,
quer dizer, a vida do corpo, que não é senão transitória, pela vida
definitiva. O homem que não considera as coisas senão do ponto de vista
terrestre é como aquele que, estando no interior de uma casa, não pode
julgar nem da forma, nem da importância do edifício; julga sobre as
falsas aparências, porque não pode ver tudo; ao passo que aquele que vê
de fora, só ele podendo julgar o conjunto, julga mais sadiamente.
Para
ver as coisas desta maneira, dir-se-á, é preciso uma inteligência pouco
comum, um espírito filosófico que não se saberia encontrar nas massas;
de onde seria preciso concluir que, com poucas exceções, a Humanidade se
arrastará sempre no terra-a-terra. É um erro; para
se identificar com a vida futura não é preciso uma inteligência
excepcional, nem grandes esforços de imaginação, porque cada um dela
leva consigo a intuição e o desejo;
mas a maneira pela qual se a apresenta, geralmente, é muito pouco
sedutora, uma vez que oferece por alternativa as chamas eternas ou uma
contemplação perpétua, o que faz com que muitos achem o nada preferível;
de onde a incredulidade absoluta em alguns, e a dúvida na maioria. O
que faltou até o presente foi a prova irrecusável da vida futura, e esta prova o Espiritismo vem dá-la, não mais por uma teoria vaga, mas por fatos patentes.
Bem mais, mostra tal como a razão, a mais severa, pode aceitá-la,
porque explica tudo, justifica tudo, e resolve todas as dificuldades.
Por isso mesmo é que ela é clara e lógica, e está ao alcance de todo o
mundo; eis porque o Espiritismo conduz à crença tantas pessoas que dela tinham se afastado.
A experiência demonstra, cada dia, que o simples artesão, que os
camponeses sem instrução, compreendem esse raciocínio sem esforços;
colocam-se nesse novo ponto de vista tanto mais de boa vontade quanto
nele encontram, como todas as pessoas infelizes, uma imensa consolação, e
a única compensação possível em sua penosa e laboriosa existência.
Se
esta maneira de encarar as coisas terrestres se generalizasse, não
teria por conseqüência destruir a ambição, estimulando grandes
empreendimentos, trabalhos mais úteis, mesmo obras de gênio? Se a
Humanidade inteira não pensasse mais senão na vida futura tudo não
periclitaria neste mundo? Que fazem os monges nos conventos, se não é se
ocupar exclusivamente do céu? Ora, em que se tornaria a Terra se todo
mundo se fizesse monge?
Um
tal estado de coisas seria desastroso, e os inconvenientes maiores do
que se pensa, porque os homens a perderiam sobre a Terra e não ganhariam
nada dela no céu; mas o resultado do princípio que expomos é
inteiramente outro para quem não a compreenda pela metade, assim como a
explicamos.
A
vida corpórea é necessária ao Espírito, ou à alma, o que é a mesma
coisa, para que possa cumprir no mundo material as funções que lhe são
destinadas pela Providência: é um dos órgãos da harmonia universal.
A atividade que está forçada a desdobrar nas funções que exerce com o
seu desconhecimento, crendo não agir senão por si mesma, que ajuda o
desenvolvimento de sua inteligência e facilita seu adiantamento. A
felicidade do Espírito na vida espiritual, sendo proporcional ao seu
adiantamento e ao bem que pôde fazer como homem, disso resulta que quanto
mais a vida espiritual adquire importância aos olhos do homem, mais ele
sente a necessidade de fazer o que for possível para nela assegurar o
melhor lugar possível.
A experiência daqueles que viveram vem provar que uma vida terrestre
inútil ou mal empregada é sem proveito para o futuro, e que aqueles que
não procuram neste mundo senão as satisfações materiais as pagam bem
caro, seja pelos seus sofrimentos no mundo dos Espíritos, seja pela
obrigação, em que estão, de recomeçar sua tarefa em condições mais
penosas do quê no passado, e tal é o caso de muitos daqueles que sofrem
sobre a Terra. Portanto, considerando
as coisas deste mundo do ponto de vista extra-corpóreo, o homem, longe
de ser excitado pela negligência e pela ociosidade, compreende melhor a
necessidade do trabalho.
Falando do ponto de vista terrestre, esta necessidade é uma injustiça,
aos seus olhos, quando se compara com aqueles que podem viver sem fazer
nada: tem-lhes ciúme, os inveja. Falando do
ponto de vista espiritual, esta necessidade tem sua razão de ser, sua
utilidade, e a aceita sem murmurar, porque compreende que, sem trabalho,
ficaria indefinidamente na inferioridade e privado da felicidade
suprema a que aspira,
e que não saberia esperar se não se desenvolve intelectualmente e
moralmente. Sob este aspecto, muitos monges nos parecem mal
compreenderem o objetivo da vida terrestre, e ainda menos as condições
da vida futura. Pela seqüestração, se privam dos meios de se tornarem
úteis aos seus semelhantes, e muitos daqueles que estão hoje no mundo
dos Espíritos, nos confessaram estar estranhamente enganados, e sofrer
as conseqüências de seus erros.
Este
ponto de vista tem para o homem uma outra conseqüência imensa e
imediata: é a de lhe tornar mais suportáveis as tribulações da vida.
Que ele procure se proporcionar o bem-estar, a passar o mais
agradavelmente possível o tempo de sua existência sobre a Terra, é muito
natural e nada o proíbe. Mas, sabendo
que não está neste mundo senão momentaneamente, que um futuro melhor o
espera, atormenta-se pouco com as decepções que experimenta, e, vendo as
coisas do alto, toma seus fracassos com menos amargura; permanece
indiferente aos tormentos dos quais é alvo da parte dos invejosos e dos
ciumentos; reduz ao seu justo valor os objetos de sua ambição, e se
coloca acima das pequenas suscetibilidades do amor-próprio. Livre dos cuidados que se crê o homem que não sai de sua estreita esfera, pela
perspectiva grandiosa que se abre diante dele, não é senão mais livre
para se entregar a um trabalho proveitoso para si mesmo e para os outros.
As afrontas, as diatribes, as maldades de seus inimigos não são para
ele senão imperceptíveis nuvens num imenso horizonte; não se inquieta
mais do que as moscas que zumbem aos seus ouvidos, porque sabe que delas logo estará livre;
também todas as pequenas misérias que se lhe suscita, escorregam sobre
ele como a água sobre o mármore. Colocando-se do ponto de vista
terrestre, com isso se irritaria, disso se vingaria talvez; do ponto de
vista extra-terrestre, os despreza como salpicos de um mal-estar
passageiro. Esses são espinhos lançados sobre sua senda, e sobre os
quais passa, sem mesmo se dar ao trabalho de afastá-los, para não
demorar sua caminhada para o objetivo mais sério que se propôs alcançar.
Longe de querer o mesmo aos seus inimigos, ele lhes sabe agradecer por
fornecer-lhe a ocasião de exercer a sua paciência a e sua moderação, em
proveito de seu adiantamento futuro, ao passo que disso perderia o fruto
se se rebaixasse em represálias. Lamenta-os
por se darem a tantas penas inúteis, e se diz que são eles mesmos que
caminham sobre os espinhos pelos cuidados que tomam para fazer o mal.
Tal é o resultado da diferença do ponto de vista sob o qual se considera
a vida: um vos dá confusões e ansiedade; o outro a calma e a serenidade.
Espíritas que sentis decepções, deixai um instante a Terra, pelo
pensamento; subi às regiões do infinito e olhai do alto: vereis o que
elas serão.
Diz-se
algumas vezes. Vós que sois infelizes, olhai abaixo de vós e não acima,
e com isso vereis mais infelizes ainda. Isto é muito verdadeiro, mas
muitas pessoas se dizem que o mal dos outros não cura o seu. O remédio
não está sempre senão na comparação, e ocorre para os quais é difícil
não olhar para o alto e dizer-se: "Por que este tem o que não tenho?" Ao
passo que se colocando no ponto de vista do qual falamos, aquele em
que, forçosamente, estaremos um pouco à frente, se está, muito
naturalmente, acima daqueles que poderíamos invejar, porque, daí, os
maiores parecem bem pequenos.
Lembramo-nos
de ter visto representar no Odéon, há uns quarenta anos, uma peça em um
ato, intitulada lês Ephémères, não sabemos mais de que autor; mas,
embora jovem então, ela nos causou uma viva impressão. A cena se passava
no país dos Ephémères, cujos habitantes não vivem senão vinte e quatro
horas. No espaço de um ato, se os vê passar do berço à adolescência, à
juventude, à idade madura, à velhice, à decrepitude e à morte. Nesse
intervalo, cumprem todos os atos da vida: batismo, casamento, negócios
civis e governamentais, etc.; mas como o tempo é curto e as horas
contadas, é preciso se apressar; também tudo se faz com uma rapidez
prodigiosa, o que não lhes impede de se ocupar de intrigas, e de se
darem muito trabalho para satisfazer sua ambição, e se superarem uns aos
outros. Esta peça, como se vê, encerrava um pensamento profundamente
filosófico, e involuntariamente o espectador, que via num instante se
desenrolar todas as fases de uma existência bem cheia, se punha a dizer:
Quanto essas pessoas são tolas em se darem tanto mal por tão pouco
tempo que têm para viver! Que lhes resta das confusões de uma ambição de
algumas horas? Não fariam melhor viverem em paz?
Está
bem aí o quadro da vida humana vista do alto. A peça, no entanto, não
viveu pouco mais que seus heróis: não foi compreendida. Se o autor
vivesse ainda, o que ignoramos, provavelmente hoje seria espírita.
A.K.
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