segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Da inveja nos médiuns

Por Allan Kardec

(Revista Espírita, abril de 1861 - Ensinos e dissertações espíritas.)

(Enviado pelo Sr. KY..., correspondente da Sociedade em Karlsruhe) 

Por si mesmo e por sua própria inteligência, o homem vão é tão desprezível quanto digno de pena. Ele enxota a verdade de sua frente, para substituí-la por seus argumentos e convicções pessoais, que julga infalíveis e inapeláveis, porque são seus. O homem vão é sempre egoísta, e o egoísmo é o flagelo da Humanidade. Mas, desprezando o resto do mundo, ele mostra bem a sua pequenez. Repelindo verdades que para ele são novas, também mostra a estreiteza de sua inteligência pervertida por sua obstinação, que aumenta ainda mais a sua vaidade e o seu egoísmo.

Infeliz do homem que se deixa dominar por estes seus dois inimigos. Quando ele despertar nesse estado em que a verdade e a luz derramar-se-ão de todos os lados sobre ele, então só verá em si um ser miserável que se exaltou loucamente acima da Humanidade, em sua vida terrena, e que estará muito abaixo de certos seres mais modestos e mais simples, aos quais ele pensava impor-se aqui na Terra.

Sede humildes de coração, vós a quem Deus aquinhoou com seus dons espirituais. Não atribuais nenhum mérito a vós próprios, assim como se atribui a obra não aos utensílios, mas ao operário. Lembrai-vos bem de que não passais de instrumentos de que Deus se serve para manifestar ao mundo o seu Espírito Onipotente, e que não tendes qualquer motivo para vos glorificardes de vós mesmos. Há tantos médiuns, ah! que se tornam vãos, em vez de humildes, à medida que seus dons se desenvolvem! Isto é um atraso no progresso, pois ao invés de ser humilde e passivo, muitas vezes o médium repele, por vaidade e orgulho, comunicações importantes, que vêm à luz através de outros mais merecedores. Deus não olha a posição material de uma pessoa para lhe conferir seu espírito de santidade; bem ao contrário, porque muitas vezes exalça os humildes dentre os humildes, para dotá-los das maiores faculdades, a fim de que o mundo veja que não é o homem, mas o espírito de Deus, por intermédio do homem, que faz milagres. Como eu já disse, o médium é o simples instrumento do grande Criador de todas as coisas, e a ele é que se deve render glória; a ele é que se deve agradecer por sua inesgotável bondade.

Eu gostaria de dizer uma palavra também sobre a inveja e o ciúme que muitas vezes reinam entre os médiuns e que, como erva daninha, é necessário arrancar, desde quando começa a aparecer, temendo que abafe os bons germes vizinhos.

No médium, a inveja é tão temível quanto o orgulho; prova a mesma necessidade de humildade. Direi mesmo que denota falta de senso comum. Não é mostrando-se invejosos dos dons do vosso vizinho que recebereis dons semelhantes, porque se Deus dá muito a uns e pouco a outros, tende certeza de que agindo assim, ele tem um motivo bem fundado. A inveja azeda o Coração; até abafa os melhores sentimentos; é portanto um inimigo que só é possível evitar com muito empenho, pois não dá tréguas uma vez que se apoderou de nós. Isto se aplica a todos os casos da vida terrena, mas eu quis referir-me sobretudo à inveja entre os médiuns, tão ridícula quanto desprezível e infundada, e que prova quanto o homem é fraco quando se torna escravo de suas paixões.

LUOS 

OBSERVAÇÃO: Quando da leitura dessa última comunicação na Sociedade, estabeleceu-se uma discussão sobre a inveja dos médiuns, comparada com a dos sonâmbulos. Um dos membros, o Sr. D..., disse que na sua opinião a inveja é a mesma em ambos os casos, e que se parece mais frequente nos sonâmbulos, é que neste estado eles não a sabem dissimular.

O Sr. Allan Kardec refuta essa opinião dizendo: “A inveja parece inerente ao estado sonambúlico, por uma causa difícil de compreendermos e que os próprios sonâmbulos não podem explicar. Tal sentimento existe entre sonâmbulos que em vigília não têm entre si senão benevolência. Nos médiuns está longe de ser habitual e depende, evidentemente, da natureza moral da criatura. Um médium só tem inveja de outro médium porque está em sua natureza ser invejoso. Esse defeito, filho do orgulho e do egoísmo, é essencialmente prejudicial à pureza das comunicações, ao passo que o sonâmbulo mais invejoso pode ser muito lúcido, o que se compreende muito facilmente. O sonâmbulo vê por si mesmo. É o seu próprio Espírito que se desprende e age. Ele não necessita de ninguém. Ao contrário, o médium não passa de intermediário: recebe tudo de Espíritos estranhos, e sua personalidade está muito menos em jogo que a do sonâmbulo. Os Espíritos simpatizam com ele em razão de suas qualidades ou de seus defeitos; ora, os defeitos mais antipáticos aos bons Espíritos são o orgulho, o egoísmo e o ciúme. A experiência nos ensina que a faculdade mediúnica, como faculdade, independe das qualidades morais; pode, assim como a faculdade sonambúlica, existir no mais alto grau no mais perverso indivíduo. Já é completamente diverso em relação às simpatias dos bons Espíritos, que se comunicam naturalmente, tanto mais à vontade quanto mais o intermediário encarregado de transmitir o seu pensamento for mais puro, mais sincero e mais se afaste da natureza dos maus Espíritos. A este respeito fazem o que nós mesmos fazemos quando tomamos alguém para confidente. Especialmente no que concerne à inveja, como esta falha existe em quase todos os sonâmbulos e é muito mais rara nos médiuns, parece que nos primeiros é uma regra e nos últimos uma exceção, de onde se seguiria que a causa não deve ser a mesma nos dois casos”. 

ALLAN KARDEC

domingo, 29 de novembro de 2015

Alguns pontos sobre a visão espírita do suicídio assistido

Por Ademir Xavier

"Sua alma, embora separada do corpo, ainda está completamente mergulhada no que se poderia chamar o turbilhão da matéria corpórea; as ideias terrestres ainda são vivazes; ele não acredita que está morto." (A. Kardec, "O Céu e o Inferno", Segunda Parte, Exemplos, Capítulo 5, Suicidas: O suicida de Samaritaine)

O suicídio assistido (eutanásia ativa, 1) é a liberdade dada a pacientes considerados terminais, sem cura, de planejarem  e executarem a própria morte. Vimos um caso  recente, o da americana Brittany Maynard de 29 anos (2) que, diante de um tumor de cérebro incurável, decidiu se suicidar. Nesse caso, cremos não haver diferença com qualquer outro ato de suicídio conscientemente decidido, já que a impossibilidade de cura não é justificativa para o ato como discutimos abaixo.

A questão da decisão pelo suicídio assistido ou eutanásia é considerada um tabu na sociedade pelas incertezas sobre a vida futura ("medo da morte"). Com a onda de liberalismos crescentes, grupos se fortalecerão propondo sua aplicação de forma sistemática. Há uma clara fronteira entre a vida e a morte em uma sociedade que tem muita dificuldade em lidar com a morte.

Discutimos aqui alguns pontos que devem ser considerados no esboço da visão espírita do suicídio assistido. Eles não pretendem ser definitivos, mas devem ser lembrados no contexto do avanço do conhecimento trazido pela Doutrina Espírita. Esses pontos também se aplicam ao suicídio de forma geral.

O "Livro dos Espíritos", questão 953.

Quando uma pessoa vê diante de si um fim inevitável e horrível, será culpada se abreviar de alguns instantes os seus sofrimentos, por uma morte voluntária?

“É sempre culpado aquele que não aguarda o termo que Deus lhe marcou para a existência. E quem poderá estar certo de que, malgrado as aparências, esse termo tenha chegado; de que um socorro inesperado não venha no último momento?” 

a) – Concebe-se que, nas circunstâncias ordinárias, o suicídio seja repreensível; mas estamos figurando o caso em que a morte é inevitável, e em que a vida só é encurtada de alguns instantes. 

“É sempre uma falta de resignação e de submissão à vontade do Criador.”

Antes que o leitor cético conclua que a proibição do suicídio para o Espiritismo - mesmo no caso assistido - se baseia em um critério de autoridade, é preciso lembrar o suporte empírico que a Doutrina Espírita apresenta ao problema. De fato, seria um critério exclusivamente de autoridade, não dispusesse o Espiritismo de métodos e processos de demonstração com os quais ele ilustra seus princípios. Isso diferencia bastante o conhecimento espírita de outras tradições religiosas ou culturais. Basta ver o Capítulo 5 de "O Céu e o Inferno" de A. Kardec para colher informes sobre o estado futuro daqueles que cometem suicídio. Além do sofrimento, suas maior consequência, para quem o pratica, é uma profunda desilusão por se perceber vivo, por reconhecer a inutilidade do ato. 

Não há dúvidas de que o suicídio é uma opção. É a aplicação da "lei de liberdade" (Questão 843 em "O Livro dos Espíritos), não há razão para se duvidar desse direito. Mas, a decisão sobre a conveniência ou não de um ato obviamente não pode se basear exclusivamente na existência do direito de praticá-lo. Proponentes do suicídio assistido, eutanásia ou do aborto justamente reduzem a questão à discussão de direitos porque confundem progresso com liberdade irrestrita.

É fora de dúvida que temos o direito de praticar muitos atos dentro da liberdade que dispomos. Mas, nem todos esses atos são convenientes. Certamente, a liberdade de se atirar do vigésimo andar de um prédio deve ser ponderada pelos sofrimentos que colheremos como consequência da queda. Inúmeros outros exemplos são frequentemente adiantados por médicos e especialistas em saúde quanto ao sofrimento material do uso de drogas, de práticas ilícitas etc.

Ainda assim, vemos céticos que acusam os espíritas de usar o medo como arma de convencimento. Ora, se evidências de sofrimento certo não servem para convencer alguém da inconveniência de um ato, nenhum outro argumento será suficiente.  É claramente irracional desprezar evidências, quaisquer que sejam elas, o que se aplica também às resultantes da mediunidade, que sinalizam que o suicídio leva ao sofrimento. Contra essas, o recurso final é "negar sistematicamente", por isso nos posicionamos tanto aqui contra o ceticismo.

16. A incredulidade, a simples dúvida sobre o futuro, as idéias materialistas, numa palavra, são os maiores incitantes ao suicídio; ocasionam a covardia moral. Quando homens de ciência, apoiados na autoridade do seu saber, se esforçam por provar aos que os ouvem ou leem que estes nada têm a esperar depois da morte, não estão de fato levando-os a deduzir que, se são desgraçados, coisa melhor não lhes resta senão se matarem? Que lhes poderiam dizer para desviá-los dessa conseqüência? Que compensação lhes podem oferecer? Que esperança lhes podem dar? Nenhuma, a não ser o nada. Daí se deve concluir que, se o nada é o único remédio heroico, a única perspectiva, mais vale buscá-lo imediatamente e não mais tarde, para sofrer por menos tempo. 

A propagação das ideias materialistas é, pois, o veneno que inocula a ideia do suicídio na maioria dos que se suicidam, e os que se constituem apóstolos de semelhantes doutrinas assumem tremenda responsabilidade. Com o Espiritismo, tornada impossível a dúvida, muda o aspecto da vida. O crente sabe que a existência se prolonga indefinidamente para lá do túmulo, mas em condições muito diversas; donde a paciência e a resignação que o afastam muito naturalmente de pensar no suicídio; donde, em suma, a coragem moral. ("O Evangelho segundo o Espiritismo, Capítulo 5, O Suicídio e a Loucura).

Ao invés de se fixar no sofrimento, a crença na vida futura antevê o estado de felicidade em que se encontrará o ser depois de passar pelas dificuldades da existência Uma verdadeira revolução opera naquele que adquire a certeza da continuidade da vida. Ele sabe que o sofrimento é transitório e que, mesmo se sua vida material terminar, continuará a existir em outro estado, livre da matéria e das vicissitudes por ela impostas. Essa é a verdadeira visão espírita, aquela que deverá assinalar uma mudança completa na maneira como encaramos o sofrimento e a morte.

Conclusões

A dúvida sobre a vida futura é dissipada pelo conhecimento espírita, que traz informações, declaradas pelo próprio ser depois da morte, sobre seu estado. E as informações da via mediúnica mostram que a prática do suicídio leva ao sofrimento do Espírito no curto prazo, à ponderação quanto a sua inutilidade e à necessidade futura de reparação (3).   Se há sofrimento "do lado de cá", também há "do lado de lá", resultado do continuísmo da vida. Mas, os que confundem progresso com liberdade irrestrita, pensam o contrário e desprezam os relatórios mediúnicos como novas versões do inferno cristão. 

O suicídio é, acima de tudo, consequência do materialismo, da incredulidade, da ignorância total da vida futura e da transitoriedade dos sofrimentos, da falta de resignação do indivíduo cujo orgulho o faz crer ser indigno da situação a ser vencida. Somente uma crença forte, escorada em evidências e em um método, é capaz de vencer esse estado de coisas. As milhares de mensagens e comunicações daqueles que partiram pedem que tenhamos mais paciência com nossas provas. Elas são passageiras e um futuro grandioso aguarda os que souberem suportá-las com coragem e resignação.

Referências

(1) http://pt.wikipedia.org/wiki/Eutan%C3%A1sia

(2) http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/podemos-decretar-a-propria-morte

(3) O suicídio leva não só ao aumento do sofrimento, mas exige o retorno as mesmas conjunturas que  resultaram ao ato. O Espírito praticamente se força a nova existência quando terá que vencer a prova onde falhou. Isso acontecerá tantas vezes quanto ele capitular na prova. 

Publicado originalmente em http://eradoespirito.blogspot.com.br/2014/11/alguns-pontos-sobre-visao-espirita-do.html e reproduzido com a autorização do autor.

sábado, 28 de novembro de 2015

Um drama íntimo - Apreciação Moral

Por Allan Kardec


O Monde Illustré de 7 de fevereiro de 1863 conta o drama de família seguinte, que comoveu, a justo título, a sociedade de Florença. O autor assim começa a sua narração:

“Eis a história. Ele era um velho de setenta e dois anos; ela, uma jovem de vinte. Ele a havia esposado há três anos... Não vos revolteis! O velho conde, originário de Viterbo, era absolutamente sem família, o que é muito estranho para um milionário! Amália não era sem família, mas era sem milhões! Para compensar as coisas, quase a tendo visto nascer, sabendo-a de bom coração e de um espírito encantador, ele tinha dito à mãe: ‘Deixa-me paternalmente casar com Amália. Durante alguns anos ela cuidará de mim e depois...’

“Fez-se o casamento. Amália compreende os seus deveres; cerca o velho dos mais assíduos cuidados e lhe sacrifica todos os prazeres de sua idade. Tendo o conde ficado cego e semipa­ralítico, ela passava as mais longas horas do dia a lhe fazer companhia, a fazer leitura, a lhe contar tudo o que podia distraí-lo e encantá-lo. ‘Como sois boa, minha cara filha!’ exclamava ele muitas vezes, tomando-lhe as mãos e atraindo-a para depor sobre sua fronte o casto e doce beijo do enternecimento e do reconhecimento.

“Um dia, entretanto, ele percebe que Amália se afasta de sua pessoa; que, posto sempre assídua e cheia de solicitude, ela parece temer sentar-se a seus pés. Uma suspeita atravessa seu espírito. Uma noite, quando ela fazia leitura, ele lhe toma o braço, a atrai, enlaça-lhe a cintura e então, soltando um grito terrível, cai esgotado de emoção e de cólera aos pés da jovem! Amália perde a cabeça; lança-se para a escada, atinge o andar superior, precipita-se pela janela e cai estatelada. O velho sobreviveu apenas seis horas a essa catástrofe!” 

Perguntarão que relação pode ter esta história com o Espiritismo? Vê-se aí a intervenção de alguns espíritos brincalhões? - Essas relações estão nas deduções que o Espiritismo ensina a tirar das coisas aparentemente mais vulgares da vida. Quando o céptico ou o indiferente não vê num fato senão um motivo para a ironia, ou passa ao lado sem notar, o espírita o observa e dele tira uma instrução, remontando às causas providenciais, sondando-lhes as consequências para a vida porvindoura, conforme os exemplos que as relações de além-túmulo lhe oferecem, da justiça de Deus.

No fato acima relatado, em vez de simples e agradável anedota entre ele, o velho, e ela, a jovem, o Espiritismo vê duas vítimas. Ora, como o interesse pelos infelizes não termina no sólio da vida presente, mas os segue na vida futura, na qual acredita, ele pergunta se aí não há um duplo castigo para uma dupla falta, e se ambos não foram punidos por onde pecaram. Ele vê um suicídio, e como sabe que esse crime é sempre punido, ele se pergunta qual o grau de responsabilidade em que incorre o que o cometeu.

Vós que pensais que o Espiritismo só se ocupa de duendes, de aparições fantásticas, de mesas girantes e de Espíritos batedores, se vos désseis ao trabalho de estudá-lo, saberíeis que ele toca em todas as questões morais. Esses Espíritos que vos parecem tão risíveis, e que, entretanto, não passam de almas dos homens, dão a quem observa as suas manifestações a prova de que ele próprio é Espírito, momentaneamente ligado a um corpo. Ele vê na morte não o fim da vida, mas a porta da prisão que se abre ao prisioneiro para restituí-lo à liberdade. Aprende que as vicissitudes da vida corpórea são as consequências de suas próprias imperfeições, isto é, das expiações pelo passado e pelo presente, e provações para o futuro. Daí ele é naturalmente conduzido a não ver o cego acaso nos acontecimentos, mas a mão da Providência. Para ele a justa sentença: A cada um segundo as suas obras não só acha a sua aplicação apenas no além-túmulo, mas também na Terra. Eis por que tudo o que se passa em redor de si tem seu valor, sua razão de ser. Ele tudo estuda para disso tirar proveito e regular sua conduta com vistas ao futuro, que para ele é uma realidade demonstrada. Remontando às causas das desgraças que o afligem, aprende a não mais acusar a sorte ou a fatalidade, mas a si mesmo.

Não tendo esta digressão outro objetivo senão mostrar que o Espiritismo se ocupa de algo mais que de Espíritos batedores, voltemos ao nosso assunto. Considerando-se que o fato foi tornado público, é permitido apreciá-lo, tanto mais quanto não designamos ninguém nominalmente.

Se se examinar a coisa do ponto de vista puramente mundano, a maior parte das pessoas não verá nele senão a consequência muito natural de uma união desproporcional, e atirarão no velho a pedra do ridículo como oração fúnebre. Outros acusarão de ingratidão a jovem senhora que traiu a confiança do homem generoso que queria enriquecê-la. No entanto, ela tem para o espírita um lado mais sério, porque o espírita aí busca um ensinamento.

Perguntar-nos-emos, então, se na ação do velho não havia mais egoísmo que generosidade ao vincular uma moça quase criança à sua caducidade, pelos laços indissolúveis que podiam conduzi-la à idade em que se deve antes pensar no descanso do que em gozar do mundo; se impondo-lhe esse duro sacrifício, não era fazê-la pagar bem caro a fortuna que lhe prometera. Não há verdadeira generosidade sem desinteresse. Quanto à jovem, ela não podia aceitar esses laços senão com a perspectiva de vê-los quebrados em breve, pois nenhum motivo de afeição a ligava ao velho. Havia, pois, cálculo de ambos os lados, e esse cálculo foi frustrado. Deus não permitiu que nem um nem o outro o aproveitassem. A um infringiu a desilusão, ao outro a vergonha, que os mataram a ambos.

Resta a responsabilidade do suicídio, que jamais fica impune, mas que muitas vezes encontra circunstâncias atenuantes. A mãe da jovem, para encorajá-la a aceitá-lo, havia dito: “Com esta grande fortuna farás a felicidade do homem pobre que amares. Enquanto esperas, honra e respeita, durante o que lhe resta de vida, esse grande coração que quis fazer-te sua herdeira.” Era tomá-la pelo lado sensível, mas, para gozar dos benefícios desse grande coração, que teria sido muito maior se a tivesse dotado sem interesse, seria preciso especular sobre a duração de sua vida. A moça errou ao ceder, mas a mãe errou mais em excitá-la, e é ela que incorrerá na maior parte da responsabilidade do suicídio da filha.

É assim que aquele que se mata para escapar à miséria é culpado pela falta de coragem e de resignação, mas muito mais culpado ainda é aquele que é a causa primeira desse ato de desespero. Eis o que o Espiritismo ensina, pelos exemplos que põe sob os olhos daqueles que estudam o mundo invisível.

Quanto à mãe, sua punição começa nesta vida, a princípio pela morte horrível da filha, cuja imagem talvez venha persegui-la e enchê-la de remorsos, depois pela inutilidade, para ela, do sacrifício que ela provocou, porque tendo falecido o marido seis horas depois de sua mulher, toda a sua fortuna vai para os colaterais afastados, e ela nenhum proveito terá.

Os jornais estão cheios de casos de todo gênero, louváveis ou censuráveis, que podem oferecer, como este que acabamos de relatar, assunto para estudos morais sérios. É para os espíritas uma mina inesgotável de observações e instruções. O Espiritismo lhes dá os meios de aí descobrirem o que se passa desapercebido para os indiferentes e ainda mais para o céptico, que geralmente aí não vê senão o fato mais ou menos picante, sem lhe procurar nem as causas nem as consequências. Para os grupos, é um elemento fecundo de trabalho, no qual os Espíritos protetores não deixarão de ajudar, dando a sua apreciação.

Fonte: Revista Espírita, fevereiro de 1864 - Um drama íntimo

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

A força do remorso - Estudo moral

Da Revista Espírita

Escrevem de Winschoten, a 2 de maio de 1867, ao Journal de Bruxelles:

Sábado passado aconteceu em nossa comuna que um operário cavouqueiro se apresentou na casa do guarda campestre, onde intimou esse funcionário a prendê-lo e o entregar à justiça, diante da qual, dizia ele, tinha que fazer a confissão de um crime por ele cometido há vários anos. Levado ante o burgomestre, esse operário, que declarou chamar-se Jean Ryzak, fez a seguinte confissão:

“Há cerca de doze anos eu era empregado nos trabalhos de dessecamento do lago de Harlem, quando um dia o cabo, pagando a minha quinzena, entregou-me o soldo devido a um de meus camaradas, com ordem de entregá-la a este último. Gastei o dinheiro e, querendo evitar aborrecimentos de investigações, resolvi matar o amigo a quem acabara de roubar. Para isso, precipitei-o num dos abismos do lago e, vendo-o voltar à superfície e fazer esforços para nadar para a margem, dei-lhe duas facadas na nuca.

“Logo que cometi o crime, o remorso começou a fazer-se sentir. Em breve tornou-se intolerável e foi-me impossível continuar no trabalho. Comecei por fugir do teatro do meu erro, e não achando em parte alguma do país nem paz nem trégua, embarquei para as Índias, onde me alistei no exército colonial. Mas lá também o espectro de minha vítima me perseguiu noite e dia; minhas torturas eram incessantes e incríveis e, assim que terminou o meu período de engajamento, uma força irresistível impeliu-me a voltar a Winschoten e a pedir à justiça o apaziguamento de minha consciência. Ela mo dará, impondo-me a expiação que julgar conveniente, e se ordenar que eu morra, prefiro esse suplício ao que me faz experimentar, há doze anos, a toda hora do dia e da noite, o carrasco que trago no peito.”

Após essa declaração, e tendo certeza de que o homem que estava à sua frente estava no pleno uso de sua razão, o magistrado requisitou a polícia, que prendeu Ryzak e relatou imediatamente o caso ao oficial de justiça.

Aqui se aguarda com emoção a sequência que poderá ter este estranho acontecimento.


INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS SOBRE ESTE CASO

(Sociedade de Paris, 10 de maio de 1867 - Médium, Srta. Lateltin)


Como sabeis, cada ser tem a liberdade do bem e do mal, o que chamais de livre-arbítrio. O homem tem em si sua consciência que o adverte quando fez o bem ou fez o mal, cometeu uma ação má ou negligenciou de fazer o bem; sua consciência que, como guarda vigilante encarregada de velar por ele, aprova ou desaprova sua conduta. Muitas vezes acontece que ele se mostre rebelde à sua voz, que repila as suas inspirações; que queira abafá-la pelo esquecimento, mas nunca ela é completamente aniquilada para que num dado momento não desperte mais forte e mais poderosa e não exerça um severo controle de vossas ações.

A consciência produz dois efeitos diferentes: a satisfação de haver agido bem, a paz que deixa o sentimento do dever cumprido; e o remorso que penetra e tortura quando se praticou uma ação reprovada por Deus, pelos homens ou pela honra. É, propriamente falando, o senso moral. O remorso é como uma serpente de mil voltas, que circula em redor do coração e o devasta; é o remorso que sempre vos faz ouvir os mesmos brados e vos grita: Fizeste uma ação má; deverás ser punido; teu castigo não cessará senão depois da reparação. E quando a esse suplício de uma consciência atormentada vem juntar-se a visão constante da vítima, da pessoa a quem se fez o mal; quando, sem repouso nem trégua, sua presença censura ao culpado sua conduta indigna, lhe repete incessantemente que sofrerá enquanto não houver expiado e reparado o mal que fez, o suplício se torna intolerável. É então que, para pôr fim às suas torturas, seu orgulho se dobra e ele confessa os seus crimes. O mal carrega em si a sua pena, pelo remorso que deixa e pelos reproches feitos unicamente pela presença daqueles contra os quais se agiu mal.

Crede-me, escutai sempre essa voz que vos adverte quando estais prestes a falir; não a abafeis pela revolta do vosso orgulho, e se falirdes, apressai-vos em reparar o mal, pois do contrário o remorso seria vossa punição. Quanto mais tardardes, mais penosa será a punição e mais prolongado o suplício.

UM ESPÍRITO

(Mesma sessão - Médium, Sra. B...)


Hoje tendes um exemplo notável da punição que sofrem, mesmo na Terra, os que se tornaram culpados de uma ação má. Não é somente no mundo invisível que a visão de uma vítima vem atormentar o assassino para forçá-lo ao arrependimento; onde a justiça dos homens não começou a expiação, a justiça divina faz começar, a despeito de todos, o mais lento e o mais terrível dos suplícios, o mais temível castigo.

Há certas pessoas que dizem que a punição infligida ao criminoso no mundo dos Espíritos, e que consiste na visão contínua de seu crime, não pode ser muito eficaz, e que em nenhum caso essa punição por si só determina o arrependimento. Dizem que um perverso natural, como é o caso de um criminoso, não pode senão amargurar-se cada vez mais por essa visão, assim se tornando pior. Os que assim falam não fazem uma ideia do que pode tornar-se tal castigo; não sabem quanto é cruel esse espetáculo contínuo de uma ação que gostariam de jamais haver cometido. Certamente vemos alguns criminosos se empedernirem, mas muitas vezes é só por orgulho, e por quererem parecer mais fortes do que a mão que os castiga; é para fazer crer que não se deixam abater pela visão de imagens vãs, mas essa falsa coragem não tem longa duração; em breve vê-los-emos enfraquecerem diante desse suplício, que deve muito de seus efeitos à sua lentidão e à sua persistência. Não há orgulho que possa resistir a essa ação, semelhante à da gota d’água sobre o rochedo: por mais dura que possa ser a pedra, é inevitavelmente atacada, desagregada, reduzida a pó. É assim que o orgulho, que faz resistirem esses infelizes contra seu soberano senhor, mais cedo ou mais tarde é abatido, e que o arrependimento enfim pode ter acesso à sua alma. Como eles sabem que a origem de seus sofrimentos está em sua falta, pedem para repará-la, a fim de trazer um abrandamento para os seus males.

Aos que disso pudessem duvidar, não precisais senão citar o caso que vos foi assinalado esta noite. Ali não é só a hipótese; não é mais somente o ensinamento dos Espíritos: é um exemplo, de certo modo palpável, que se vos apresenta. Nesse exemplo, o castigo seguiu de perto a falta, e foi de tal monta que ao cabo de vários anos forçou o culpado a pedir a expiação de seu crime à justiça humana, e ele mesmo disse que todas as penas, a própria morte, lhe pareceriam menos cruéis que o que ele sofria, no momento em que se entregou à justiça.

UM ESPÍRITO

OBSERVAÇÃO: Sem ir procurar aplicações do remorso nos grandes criminosos, que são exceções na Sociedade, podemos encontrá-las nas mais comuns circunstâncias da vida. É esse sentimento que leva todo indivíduo a afastar-se daqueles diante dos quais sente que tem reproches a se fazer; em sua presença ele se sente mal; se a falta não for conhecida, ele teme ser descoberto; parece-lhe que um olhar pode penetrar o fundo de sua consciência; em toda palavra, em todo gesto, ele vê uma alusão à sua pessoa. Eis porque, se ele se sente descoberto, retira-se. O ingrato também foge de seu benfeitor, porque a presença dele é uma censura incessante, da qual em vão ele procura desembaraçar-se, porque uma voz íntima lhe grita no fundo de sua consciência que ele é culpado.

Se o remorso já é um suplício na Terra, quão maior não será no mundo dos Espíritos, onde não é possível subtrair-se à vista daqueles a quem se ofendeu. Felizes os que, tendo reparado já nesta vida, poderão sem receio enfrentar todos os olhares no mundo onde nada é oculto.

O remorso é uma consequência do desenvolvimento do senso moral; ele não existe onde o senso moral ainda se acha em estado latente. É por isto que os povos selvagens e bárbaros cometem sem remorso as piores ações. Aquele, pois, que se pretendesse inacessível ao remorso assimilar-se-ia ao bruto. À medida que o homem progride, o senso moral torna-se mais apurado; ofusca-se ao menor desvio do reto caminho. Daí o remorso, que é o primeiro passo para o retorno ao bem.

Fonte: Revista Espírita, agosto de 1867 - Jean Rizak

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Estudo mediúnico

Por Allan Kardec

Correspondência de além-túmulo

Para a compreensão do fato principal de que se trata, extraímos a passagem seguinte da carta de um assinante. Além disto, é uma simples e tocante expressão das consolações que os aflitos encontram no Espiritismo: 

“Permiti que vos diga quanto alívio me deu o Espiritismo, dando-me a certeza de rever num mundo melhor um ser que eu havia amado com um amor sem limites, um irmão querido, falecido na flor da idade. Como é consolador este pensamento que aquele cuja morte choramos, muitas vezes está perto de nós, sustentando-nos quando estamos acabrunhados ao peso da dor, alegrando-se quando a fé no futuro nos deixa entrever um encontro certo! Iniciado há alguns anos nos admiráveis preceitos do Espiritismo, eu tinha aceitado todas as suas verdades e tinha me esforçado por viver aqui de maneira a apressar o meu adiantamento. Minhas boas resoluções tinham sido tomadas muito sinceramente, entretanto, confesso que, não possuindo os elementos necessários para fortalecer e entreter minha crença na comunicação dos Espíritos, pouco a pouco me havia habituado, não a rejeitá-la, mas a encará-la com mais indiferença. É que a desgraça até então me era desconhecida. Hoje, que a Deus aprouve enviar-me uma prova dolorosa, colhi no Espiritismo preciosas consolações, e experimento a necessidade de vo-lo agradecer muito particularmente, como o primeiro propagador desta santa doutrina.

“Não sendo a doutrina do Espiritismo simples hipótese, mas apoiando-se em fatos patentes e ao alcance de todos, as consolações que proporciona não só consistem na certeza de rever pessoas amadas, mas também, e sobretudo, na possibilidade de corresponder-se com elas e delas obter salutares ensinamentos.” 

Nesta convicção, o irmão vivo escreveu esta carta ao irmão morto, solicitando a resposta através de um médium. 

N..., 14 de março de 1865.

Meu irmão muito amado,

É-me impossível dizer-te quanto fiquei feliz ao ler a carta que me endereçaste através do médium de C... Eu a transmiti aos nossos pobres pais, que afligiste muito, deixando-os de maneira tão inesperada. Eles me pedem que te escreva de novo, que te peça novos detalhes sobre tua existência atual, a fim de poderem crer, por novas provas que darás facilmente, na realidade do ensino dos Espíritos. Mas, antes de tudo, vem para junto deles muitas vezes; inspira-lhes a resignação e a fé no futuro; consola-os, pois necessitam, feridos que estão por um golpe tão imprevisto. Quanto a mim, ó meu irmão bem amado, ficarei sempre feliz quando te for permitido dar notícias tuas. Hoje venho pedir-te novamente detalhes sobre a tua moléstia, tua morte e teu despertar no mundo dos Espíritos.

- Quais os Espíritos que vieram receber-te à entrada do mundo invisível? - Reviste o nosso avô? Ele é feliz? - Reviste e reconheceste nossos parentes falecidos antes de ti, mesmo os que não conheceste na Terra? - Assististe ao teu enterro? Que impressão sentiste? Peço-te detalhes sobre essa triste cerimônia, que não permitam aos nossos pais duvidar de tua identidade. - Poderias dizer-me se algum membro de nossa família poderá tornar-se médium? Não desejarias comunicar-te através de um de nós?

Não posso compreender que não queiras continuar teus estudos de música, que cultivavas com tanto ardor na Terra. Seria um suave consolo para nós se quisesses terminar, através de um médium, os salmos que começaste a musicar em Paris.

Pudeste constatar o vazio imenso causado por tua morte no coração de todos nós. Peço-te que inspires a teus pais a coragem necessária para não sucumbirem nesta prova terrível. Sê muitas vezes com eles e dá-lhes tuas notícias.

Quanto a mim, Deus sabe quanto chorei. Malgrado minha crença no Espiritismo, há momentos em que não posso habituar-me à ideia de não mais te rever nesta Terra, e em que daria a vida para poder apertar-te ao coração.

Adeus, meu nobre amigo. Pensa algumas vezes naquele cujos pensamentos estão constantemente dirigidos para ti, e que fará o possível para ser julgado digno de um dia estar unido a ti.

Abraço-te e te aperto ao coração.

Teu irmão muito devotado, B... 

NOTA: Numa comunicação anterior, dada aos pais, através de outro médium, tinha sido dito que o jovem não queria continuar com os estudos de música no mundo dos Espíritos. 

Resposta do irmão morto ao irmão vivo. 

Eis-me aqui, meu bom irmão, mas tu exiges demais. Com a melhor boa vontade, não posso responder, numa única evocação, às numerosas perguntas que me diriges. Não sabes que por vezes é muito difícil aos Espíritos transmitirem o pensamento através de certos médiuns pouco aptos a receber claramente, em seu cérebro, a impressão fotográfica dos pensamentos de certos Espíritos, e que, desnaturando-os, lhes dão um cunho de falsidade que leva a maioria dos interessados à negação mais formal das manifestações, o que é muito pouco lisonjeiro e entristece profundamente aqueles que, na falta de instrumentos adequados, são impotentes para dar suficientes sinais de identidade?

Crê-me, bom irmão, evoca-me em família, e tu mesmo, com um pouco de boa vontade e alguns ensaios perseverantes, poderás conversar comigo à vontade. Estou quase sempre junto a ti, porque sei que és espírita e espero em ti. É certo que simpatia atrai simpatia e que não se pode ser expansivo com um médium que se vê por primeira vez. Contudo, vou tentar satisfazer-te.

Minha morte, que vos aflige, era o termo do cativeiro de minha alma. Vosso amor, vossa solicitude, vossa ternura, tinham tornado suave meu exílio na Terra. Mas, nos meus mais belos momentos de inspiração musical, eu voltava meu olhar para as regiões luminosas onde tudo é harmonia, e me esquecia a escutar os acordes longínquos da melodia celeste que me inundava com suas doces vibrações. Quantas vezes fiquei absorvido nesses devaneios estáticos aos quais devia o sucesso de meus estudos de música, que continuo aqui! Seria um erro estranho crer que a aptidão individual se perde no mundo espírita. Ao contrário, ela se aperfeiçoa, para em seguida levar esse aperfeiçoamento aos planetas onde esses Espíritos são chamados a viver.

Não choreis mais, vós todos, bem-amados parentes! Para que servem as lágrimas? Para enervar. Para desencorajar as almas. Parti primeiro, mas vireis encontrar-me. Esta certeza não é bastante poderosa para vos consolar? A rosa, que exalou seus perfumes no carvalho, morre como eu, depois de ter vivido pouco, juncando o solo de pétalas murchas. Mas o carvalho morre, por sua vez, e tem a sorte da rosa que ele chorou e cujas cores vivas se harmonizam com sua sombria folhagem.

Ainda algum tempo, e vireis a mim. Então cantaremos o cântico dos cânticos e louvaremos a Deus em suas obras, porque juntos seremos felizes, se vos resignardes à provação que vos atinge.

Aquele que foi teu irmão na Terra e te ama sempre,

B...

Comentários de Kardec:

Vários ensinamentos importantes ressaltam desta comunicação. O primeiro é a dificuldade experimentada pelo Espírito para se exprimir com o auxílio do instrumento que lhe era dado. Conhecemos pessoalmente esse médium, que há muito tempo deu provas de força e de flexibilidade da faculdade, sobretudo no caso de evocações particulares; é o que se pode chamar um médium seguro e bem assistido. De onde vem, então, esse impedimento? É que a facilidade das comunicações depende do grau de afinidade fluídica existente entre o Espírito e o médium. Cada médium está, assim, mais ou menos apto para receber a impressão ou a impulsão do pensamento de tal ou qual Espírito. Ele pode ser um bom instrumento para um e mau para outro, sem que isto permita pressupor qualquer coisa contra suas qualidades, pois a condição é mais orgânica que moral. Assim, os Espíritos buscam, de preferência, os instrumentos com os quais vibram em uníssono. Impor-lhes o primeiro que surge e crer que dele possam servir-se indiferentemente, seria como se se impusesse a um pianista tocar violino, sob a alegação de que se ele conhece música, deve saber tocar todos os instrumentos.

Sem esta harmonia, a única que pode levar à assimilação fluídica, tão necessária na tiptologia quanto na escrita, as comunicações ou são incompletas, ou impossíveis, ou falsas. Em falta do Espírito, que não podemos ver, se ele não pode manifestar-se livremente, não faltarão outros, sempre prontos a aproveitar a ocasião, e que pouco se preocupam com a verdade do que dizem. Essa similitude fluídica por vezes é totalmente impossível entre certos Espíritos e certos médiuns; outras vezes, e é o caso mais ordinário, ela só se estabelece gradualmente e com o tempo, o que explica por que de hábito os Espíritos que se manifestam por um médium, o fazem com mais facilidade, e por que as primeiras comunicações quase sempre atestam uma certa dificuldade e são menos explícitas.

Assim, está demonstrado ao mesmo tempo pela teoria e pela experiência que não há mais médiuns universais para as evocações senão pela aptidão aos diversos gêneros de manifestações. Aquele que pretendesse receber à vontade e em hora marcada as comunicações de todos os Espíritos e, consequentemente, poder satisfazer os legítimos desejos de todos os que querem entreter-se com os seres que lhes são caros, ou daria prova de uma ignorância radical dos mais elementares princípios da ciência, ou de charlatanismo e, em todos os casos, de uma presunção incompatível com as qualidades essenciais de um bom médium. Pudemos acreditar nisso durante algum tempo, mas hoje os progressos da ciência teórica e prática demonstram que isso, em princípio, é impossível. Quando um Espírito se comunica pela primeira vez por um médium sem qualquer dificuldade, isto se deve a uma afinidade fluídica excepcional ou anterior, entre o Espírito e seu intérprete.

É, pois, um erro impor um médium ao Espírito que se quer evocar. É preciso deixar-lhe a liberdade de escolha de seu instrumento. Mas, perguntarão, como fazer quando só se tem um médium, o que é muito frequente? Para começar, contentar-se com o que se tem e privar-se do que se não tem. Não está na alçada da ciência espírita mudar as condições normais das manifestações, assim como à química mudar as da combinação dos elementos.

Entretanto, há aqui um meio de atenuar a dificuldade. Em princípio, quando se trata de uma evocação nova, o médium deve sempre previamente evocar seu guia espiritual e perguntar se ela é possível. Em caso afirmativo, perguntar ao Espírito evocado se ele encontra no médium a aptidão necessária para receber e transmitir seu pensamento. Se houver dificuldade ou impossibilidade, pedir-lhe que o faça através do guia do médium ou que aceite a sua assistência. Neste caso o pensamento do Espírito só chega de segunda mão, isto é, depois de haver atravessado dois meios. Compreende-se, então, o quanto é importante que o médium seja bem assistido, porque se o for por um Espírito obsessor, ignorante ou orgulhoso, a comunicação será alterada. Aqui, as qualidades pessoais do médium forçosamente representam um papel importante, pela natureza dos Espíritos que ele atrai para si. Os mais indignos médiuns podem ter poderosas faculdades, mas os mais seguros são os que a essa força juntam as melhores simpatias no mundo invisível. Ora, essas simpatias não são absolutamente garantidas pelos nomes mais ou menos imponentes dos Espíritos que assinam as comunicações, mas pela natureza constantemente boa das comunicações que eles recebem.

Esses princípios são fundados simultaneamente na lógica e na experiência. As próprias dificuldades que apresentam provam que a prática do Espiritismo não deve ser tratada levianamente.

Outro fato ressalta igualmente da comunicação acima. É a confirmação do princípio segundo o qual os Espíritos inteligentes prosseguem na vida espiritual os trabalhos e estudos que tinham empreendido na vida corpórea.

É assim que nas comunicações que publicamos damos preferência àquelas de onde pode sair um ensinamento útil.

Quanto à carta do irmão vivo ao irmão morto, é uma ingenuidade e uma tocante expressão da fé sincera na sobrevivência da alma, na presença dos seres que nos são caros, e da possibilidade de continuar com essas relações de afeição que a eles nos uniam.

Sem dúvida os incrédulos rirão daquilo que aos seus olhos é uma credulidade pueril. Por mais que façam, o nada que preconizam jamais terá encanto para as massas, porque quebra o coração e as mais santas afeições; gela, em vez de aquecer; espanta e desespera, em vez de fortalecer e consolar.

Suas diatribes contra o Espiritismo têm por pivô essa doutrina apavorante do nada, então não é de admirar a sua impotência para desviar as massas das novas ideias. Entre uma doutrina desesperadora e outra consoladora, a escolha da maioria não podia ser duvidosa.

Depois da espantosa catástrofe da igreja de Santiago do Chile em 1864, encontraram na igreja uma caixa de cartas, na qual os fiéis depositavam aquelas que dirigiam à Santa Virgem. Seria possível estabelecer uma paridade entre a carta acima e estas últimas, que desencadearam a verve dos trocistas? Por certo que não. Contudo, o erro não era daqueles que acreditavam na possibilidade de corresponder-se com o outro mundo, mas daqueles que exploravam essa crença, dando respostas compatíveis com o pagamento prévio anexado à carta de solicitação. Há poucas superstições que não têm seu ponto de partida numa verdade desnaturada pela ignorância. Acusado de ressuscitá-las, o Espiritismo, ao contrário, vem reduzi-las ao seu justo valor.

Fonte: Revista Espírita, abril de 1865

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Suicidas - Uma mãe e seu filho

Por Allan Kardec

No mês de março de 1865, o Sr. C..., negociante de uma cidadezinha perto de Paris, tinha em casa o filho de vinte e um anos, gravemente enfermo. Esse jovem, sentindo-se prestes a expirar, chamou a mãe e ainda teve força para beijá-la. Disse-lhe esta, derramando abundantes lágrimas: “Vai, meu filho, precede-me, não tardarei a seguir-te.” Ao mesmo tempo ela saiu escondendo a cabeça entre as mãos.

As pessoas presentes a essa cena pungente consideraram as palavras da Sra. C... como uma simples explosão de dor que o tempo e a razão deviam acalmar. No entanto, tendo o doente sucumbido, procuraram-na pela casa toda, e encontraram-na enforcada num sótão. O cortejo fúnebre da mãe fez-se ao mesmo tempo que o do filho. 

Evocação do filho vários dias depois do acontecimento. 

– P. Tendes conhecimento da morte de vossa mãe que se suicidou sucumbindo ao desespero que vossa perda lhe causou?

R. Sim, e sem o desgosto que me causou a execução de sua fatal resolução, eu seria perfeitamente feliz. Pobre e excelente mãe! Ela não pôde suportar a prova desta separação momentânea, e tomou, para se reunir ao filho que tanto amava, a estrada que devia afastá-la dele, infelizmente! por muito tempo. Ela retardou assim indefinidamente essa reunião que teria sido tão imediata se a submissão às vontades do Senhor tivesse preenchido sua alma, e se ela se tivesse resignado, humilde e arrependida, diante da prova que ia sofrer, e da expiação que ia purificá-la!

Orai! Oh! Orai por ela!... e acima de tudo não a imiteis, mães enternecidas pelo triste relato de sua morte! Não acrediteis que ela amava mais do que outras mães esse filho que era sua alegria e seu orgulho; não, ela não amava mais, mas faltou-lhe coragem e resignação. Mães que me escutais, quando virdes a agonia velar os olhos extintos de vossos filhos, lembrai-vos de que, como Cristo, eles sobem ao cimo do calvário, de onde devem elevar-se na glória eterna.

                                                                                                BENJAMIN C... 

Evocação da mãe. 

– Eu quero ver meu filho! Tendes o poder de devolvê-lo a mim? ... Cruéis!... tiraram-no de mim para levá-lo para a luz e deixaram-me na noite!... Eu o quero, eu o quero... ele me pertence!... Então o amor materno não é nada? ... O quê! ter gestado nove meses, alimentado com seu leite a carne da sua carne, o sangue do seu sangue; ter guiado seus primeiros passos; ter-lhe ensinado a balbuciar o nome sagrado de Deus e o doce nome de mãe; ter feito dele um homem cheio de atividade, de inteligência, de honradez, de retidão, de amor filial, e perdê-lo quando ele realizava as esperanças que se haviam concebido para ele, quando um brilhante futuro se abria diante dele! Não, Deus não é justo; não é o Deus das mães; ele não compreende seu desespero e sua dor... e quando me mato para não deixar meu filho, roubam-no novamente de mim!... Meu filho! Meu filho! Onde estás? 

O Evocador. 

Pobre mãe, partilhamos vossa dor; mas usastes um triste meio para vos reunirdes ao vosso filho; o suicídio é um crime aos olhos de Deus, e deveríeis ter pensado que ele pune toda infração às suas leis. A privação de verdes vosso filho é vossa punição.

A mãe. 

Não; eu acreditava que Deus era melhor do que os homens; não acreditava no seu inferno, mas na reunião eterna das almas que se amaram como nos amávamos; enganei-me... Não é o Deus justo e bom, visto que não compreendeu a imensidão da minha dor e do meu amor!... Oh! quem me devolverá meu filho! Perdi-o então para sempre? Compaixão! Compaixão, meu Deus!

O Evocador. 

Vamos, acalmai vosso desespero; pensai que, se existe um meio de rever vosso filho, não é blasfemando contra Deus, como fazeis. Em vez de o pôr a vosso favor, atraís sobre vós uma severidade maior. 

A mãe. 

Eles me disseram que eu não o veria mais; entendi que foi para o paraíso que o levaram. E eu, estou então no inferno?... o inferno das mães?... ele existe, vejo-o bem demais.

O Evocador. 

Vosso filho não está perdido irremediavelmente, acreditai em mim; voltareis a vê-lo certamente; mas é preciso merecê-lo por vossa submissão à vontade de Deus, ao passo que por vossa revolta podeis retardar esse momento indefinidamente. Escutai-me: Deus é infinitamente bom, mas é infinitamente justo. Ele nunca pune sem causa, e se vos infligiu grandes dores na terra, é que as havíeis merecido. A morte de vosso filho era uma prova para vossa resignação; infelizmente, sucumbistes a ela durante a vida, e eis que depois da morte sucumbis de novo; como quereis que Deus recompense seus filhos rebeldes? Mas ele não é inexorável; acolhe sempre o arrependimento do culpado. Se tivésseis aceitado sem murmurar e com humildade a prova que ele vos enviava por essa separação momentânea, e se tivésseis aguardado pacientemente que ele tivesse a bondade de vos retirar da Terra, no momento de vossa entrada no mundo em que estais, teríeis imediatamente revisto vosso filho que teria vindo receber-vos de braços abertos; teríeis tido a alegria de vê-lo radiante depois desse tempo de ausência. Aquilo que fizestes, e o que ainda fazeis neste momento, coloca entre vós e ele uma barreira. Não acrediteis que ele esteja perdido nas profundezas do espaço; não, ele está mais perto de vós do que credes; mas um véu impenetrável o esconde de vossa vista. Ele vos vê, ama-vos, e geme pela triste posição em que vos mergulhou vossa falta de confiança em Deus; ele deseja ardentemente o momento afortunado em que lhe será permitido mostrar-se a vós; depende unicamente de vós apressar ou retardar esse momento. Pedi a Deus, e dizei comigo:

“Meu Deus, perdoai-me por ter duvidado de vossa justiça e de vossa bondade; se me punistes, reconheço que o mereci. Dignai-vos a aceitar meu arrependimento e minha submissão à vossa santa vontade.”

A mãe.  

Que vislumbre de esperança acabais de fazer resplandecer na minha alma! É um relâmpago na noite que me cerca. Obrigada, vou orar. Adeus.                                                                                                        C...

Observação: A morte, mesmo pelo suicídio, não produziu neste Espírito a ilusão de acreditar que ainda estava vivo; ele tem perfeitamente consciência de seu estado; é que em outros a punição consiste justamente nessa ilusão, nos laços que os prendem ao corpo. Esta mulher quis deixar a Terra para seguir o filho no mundo em que ele entrara: era preciso que ela soubesse que estava nesse mundo para ser punida não o reencontrando ali. Sua punição é precisamente saber que não vive mais corporalmente, e o conhecimento que tem de sua situação. É assim que cada falta é punida pelas circunstâncias que a acompanham, e não há punições uniformes e constantes para as faltas do mesmo gênero.

Fonte: O Céu e o Inferno - Segunda Parte - Exemplos - Capítulo V - Suicidas

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Espíritos felizes - Sr. Van Durst

Por Allan Kardec

Antigo funcionário público, morto em Antuérpia em 1863, com a idade de oitenta anos.

Pouco tempo após sua morte, tendo um médium perguntado a seu guia espiritual se era possível evocá-lo, foi-lhe respondido: “Esse Espírito sai lentamente de sua perturbação; ele já vos poderia responder, mas a comunicação dar-lhe-ia muita tristeza. Peço-vos então para aguardar ainda quatro dias, e ele vos responderá. Até lá ele saberá as boas intenções que expressastes a seu respeito, e virá a vós reconhecido e como bom amigo.”

Quatro dias mais tarde o Espírito ditou o que se segue: 

Meu amigo, minha vida teve um peso bem pequeno na balança da eternidade; no entanto estou longe de ser infeliz; estou na condição humilde, mas relativamente feliz daquele que fez pouco mal sem por isso visar a perfeição. Se há pessoas felizes numa pequena esfera, pois bem! faço parte delas. Lamento só uma coisa, não ter conhecido o que vós sabeis agora; minha perturbação teria sido menos longa e menos penosa. Ela foi grande, efetivamente: viver e não viver; ver seu corpo, estar fortemente apegado a ele, e, entretanto, não poder mais servir-se dele; ver aqueles que amamos e sentir extinguir-se o pensamento que nos liga a eles, como é terrível! Oh! que momento cruel! Que momento, quando o atordoamento se apodera de vós e vos sufoca! E um instante depois, trevas. Sentir, e um momento depois, ficar aniquilado. Quer-se ter a consciência de seu eu, e não se pode recuperá-la; não se é mais, e no entanto sente-se que se é; mas fica-se numa perturbação profunda! E depois, após um tempo inapreciável, tempo de angústias contidas, pois não se tem mais força para senti-las, após esse tempo que parece interminável, renascer lentamente para a existência; despertar num novo mundo! Não mais corpo material, não mais vida terrestre: a vida imortal! Não mais homens carnais, mas formas ligeiras, Espíritos que deslizam por todos os lados, giram em torno de vós e que não podeis abarcar todos com o olhar, pois é no infinito que eles flutuam! Ter diante de si o espaço e poder atravessá-lo unicamente pelo pensamento; comunicar-se pelo pensamento com tudo o que vos rodeia! Amigo, que vida nova! Que vida brilhante! Que vida de regozijos!... Salve, oh! Salve, eternidade que me conténs em teu seio!... Adeus, terra que me retiveste tanto tempo longe do elemento natural de minha alma! Não, não te quero mais, pois és a terra de exílio e tua maior felicidade não é nada!

Mas se eu tivesse sabido o que vós sabeis, como essa iniciação à outra vida me teria sido mais fácil e mais agradável! Teria sabido antes de morrer o que tive de aprender mais tarde, no momento da separação, e minha alma ter-se-ia desprendido mais facilmente. Vós estais no caminho, mas nunca, nunca ireis bastante longe! Dizei-o a meu filho, mas dizei-lhe tanto, que ele creia e se instrua; então na sua chegada aqui não estaremos separados. 

Adeus a todos, amigos, adeus; espero-vos, e durante o tempo em que estiverdes na terra, virei com frequência instruir-me convosco, pois ainda não sei tanto quanto vários dentre vós; mas aprenderei depressa aqui onde não tenho mais entraves que me retenham, e onde não tenho mais idade que debilite minhas forças. Aqui vive-se sem entrar em pormenores e avança-se, pois diante de si veem-se horizontes tão belos que se fica impaciente para abarcá-los.

Adeus, deixo-vos, adeus.

VAN DURST.

Fonte: O Céu e o Inferno - Segunda Parte - Exemplos, cap. II