sexta-feira, 22 de abril de 2016

A HISTÓRIA DE LETIL

Este industrial, que residiu nos arredores de Paris, morreu em abril de 1864, de modo horroroso. Incendiando-se uma caldeira de verniz fervente, foi num abrir e fechar de olhos que o seu corpo se cobriu de matéria candente, pelo que logo compreendeu ele que estava perdido.
Quando se lhe pôde prestar os primeiros socorros, já as carnes dilaceradas caíam aos pedaços, desnudos os ossos de uma parte do corpo e da face. Ainda assim, sobreviveu doze horas a cruciantes sofrimentos, mas conservando toda a presença de espírito até ao último momento.
Em toda esta cruel agonia não se lhe ouviu um só gemido, um só queixume, e morreu orando a Deus. Era um homem honradíssimo, de caráter meigo e afetuoso, amado, prezado de quantos o conheciam.
Evocado na Sociedade de Paris, a 29 de abril de 1864, poucos dias após a morte e ainda sob a impressão da cena terrível que o vitimou, deu a seguinte comunicação:
– Quanto sofri! oh! quanto sofri! Estou trêmulo, como que sentindo o cheiro nauseante de carnes queimadas. Minha bem-amada, não chores, que em breve estas dores se acalmarão.
Logo que me despedi da Terra, um Espírito consolador que me não deixa, disse-me ele: “Vem, meu filho, torna a ver o dia.” Então respirei mais livremente, julgando-me livre de medonho pesadelo; perguntei pela esposa amada, e ele me disse: “Estão todos na Terra, e tu, filho, estás entre nós.” Eu procurava o lar, onde, sempre em companhia do anjo, vi todos banhados de pranto. Não pude por mais tempo tolerar o espetáculo, e, comovidíssimo, disse ao meu guia: Ó meu bom anjo, saiamos daqui.
Sim, saiamos, respondeu-me, e procuremos repouso. O meu bom guia fez-me ver a causa da morte horrível que tive, e eu, a fim de vos instruir, vou confessá-la:
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Vai para dois séculos, mandei queimar uma rapariga, inocente como se pode ser na sua idade – 12 a 14 anos. Qual a acusação que lhe pesava? A cumplicidade em uma conspiração contra a política clerical. Eu era então italiano e juiz inquisidor; como os algozes não ousassem tocar o corpo da pobre criança, fui eu mesmo o juiz e o
carrasco.
Oh! quanto és grande, justiça divina! A ti submetido, prometi a mim mesmo não vacilar no dia do combate, e ainda bem que tive força para manter o compromisso. Não murmurei, e vós me perdoastes, oh! Deus! Quando, porém, se me apagará da memória a lembrança da pobre vítima inocente? Essa lembrança é que me faz sofrer! É mister, portanto, que ela me perdoe.
Oh! vós que freqüentemente dizeis não poder evitar os males pela insciência do passado! Oh! irmãos meus! bendizei antes o Pai, por que se tal lembrança vos acompanhasse à Terra, não mais haveria aí repouso em vossos corações. Como poderíeis vós, constantemente assediados pela vergonha, pelo remorso, fruir um só momento de paz?
Extraído de: O CÉU E O INFERNO

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