Não pode
haver progresso integral sem renúncia. A obra do aperfeiçoamento do
nosso Espírito é urdida de renúncias sob aspectos multiformes. Não há
caráter consolidado que se não funde numa série de renúncias. Quem não
sabe renunciar, jamais firmará as bases seguras de sua evolução.
Renunciar é vencer, vencer é viver. A redenção é impraticável fora da
órbita das renúncias: só nesse ambiente o Espírito conquista a liberdade
e firma o seu império.
O
homem é um animal que se espiritualiza. Veio do império dos instintos, e
caminha para o reinado da razão. O desenvolvimento harmônico dos
atributos do Espírito – inteligência, razão, vontade e sentimentos –
determina naturalmente o recuo do instinto. À medida que o Espírito
assegura seu poder, a animalidade se restringe. Semelhante transição, de
um para outro reino, é obra da renúncia.
O
instinto representa o domínio da carne; a razão, o do Espírito. Há
estágios na vida dos seres em que o instinto tem a primazia: época da
irracionalidade. Outros há em que o despotismo do instinto constitui a
fonte de todos os males: ciclo racional. O animal tem no instinto o seu
guia. Para o homem o guia deve ser a razão. Sempre que esta fraqueja,
cedendo lugar àquele, o homem erra e sofre. Erra porque se deixa
arrastar, tendo já o leme e a bússola para orientar-se, ao sabor das
vagas que o desviam do roteiro normal da vida. Sofre, porque o erro é
causa cujo efeito é a dor.
O
instinto não reúne os requisitos necessários para satisfazer as
aspirações do Espírito, antes constitui-lhe embaraço. Daí a necessidade
de restringi-lo, impondo limites cada vez mais restritos às suas
exigências. E isto só se consegue pela renúncia.
A
grande maioria dos homens vegeta entre duas tiranias: uma que atua no
seu interior, e se denomina instinto; outra que age de fora para dentro,
e se chama sentidos. Subjugado pelo instinto e fascinado pelos
sentidos, o homem torna-se um ser híbrido, incoerente e extravagante,
capaz de todas as aberrações. Só a renúncia, jugulando a cobiça e
refreando os instintos, poderá quebrar os grilhões desse duplo e
aviltante cativeiro.
É
o que S. Paulo aconselha em sua epístola aos Romanos, sob os seguintes
dizeres: “Rogo-vos, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os
vossos corpos como um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, pois em
tal importa o culto racional; e não vos conformeis com este mundo, mas
transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que proveis qual é a
boa, agradável e perfeita vontade de Deus.”
Para
que o nosso corpo seja um sacríficio vivo em oferenda perpétua, é
indispensável manter aceso o fogo da renúncia na imolação do instinto e
da cobiça.
“Se
alguém vem a mim e não renuncia a seu pai, mãe, mulher, filhos, irmãos e
irmãs, e ainda à sua própria vida, não pode ser meu discípulo… Assim,
pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo que possui, não
pode ser meu discípulo. Quem tem ouvidos de ouvir, ouça”.
Sempre
que o incomparável Mestre fechava seus discursos com a frase – quem tem
ouvidos de ouvir, ouça – queria, com isso, dizer: quem for capaz
penetre o sentido destas palavras, porque o meu ensino não está na letra
que mata, mas no espírito que vivifica. O trecho, acima inscrito,
acha-se em tais condições.
Jesus
tinha o lar e a família na mais alta consideração. Segundo seu modo de
ver, no lar e na família se consubstanciavam os maiores bens, aqueles a
que o homem se achava mais intimamente ligado. Daí citar precisamente o
lar e a família, ao lado da própria vida, como os objetos que fazem jus
aos nossos maiores afetos e ao nosso mais profundo e radicado apego.
Todavia, esses tesouros devem ser renunciados quando constituam embaraços á obra da redenção de nossos Espíritos.
Mas,
afinal, de que consta essa renúncia e como deve ser executada? Aqui
cumpre lembrar a observação do Senhor: Quem tiver ouvidos de ouvir,
ouça.
A
renúncia, tal como Jesus a estabelece, não significa, no que respeita à
família, o seu abandono nem o arrefecimento do afeto que une os
corações destinados a viverem sob o mesmo teto; e no que concerne aos
bens temporais, a renúncia não importa tão-pouco em abrirmos mão de tudo
que possuímos, transformando-nos em párias ou mendigos.
Renúncia,
segundo o critério evangélico, quer dizer capacidade moral, força de
caráter capaz de sobrepor, em qualquer emergência ou conjuntura, a causa
da justiça e da verdade acima de todos os interesses, de todas as
volições e prazeres, e mesmo acima das nossas mais legítimas e caras
afeições. Tal é a condição – sine qua non – estabelecida por Jesus para nos tornarmos seus discípulos.
Esta
importantíssima questão tem sido mal interpretada pela teologia de
certos credos cristãos. Do estrabismo teológico nasceram os conventos.
Os reclusos das celas supõem, com isso, apressar o dia da redenção de
suas almas. Enganam-se redondamente, pois, antes, retardam a aurora
desse dia glorioso. Não é fugindo da sociedade e se isolando
egoisticamente entre as paredes de um cubículo que aceleraremos a
evolução dos nossos Espíritos. Os trânsfugas perdem oportunidade de
avançar, na senda do progresso, porque evitam as lutas. É enfrentando os
nossos inimigos, dentre os quais a morte é o derradeiro a vencer, no
conceito de Paulo, que caminharemos com passo seguro na conquista do
porvir.
Os
tabernáculos eternos não se abrem com gazua. E que pretendem os
habitantes do claustro senão abri-los com chave falsa? Os instintos
amortecidos pelos cilícios e pelos jejuns contínuos não foram vencidos,
não foram subjugados; acham-se apenas impossibilitados de ação mediante
processos anormais, e, portanto, condenáveis. A virtude de convento é
como a planta de estufa: só medra a coberto das intempéries.
Não
é tal a renúncia ensinada por Jesus, que deu os mais inequívocos
exemplos se sociabilidade, convivendo com os pecadores, tomando parte
nos seus jantares, bodas e festins, a despeito mesmo das censuras
acrimoniosas do farisaísmo que cobria de apodos por isso.
A
filha deixa seus pais, que abandona o lar e a sociedade para
sepultar-se num convento, comete um ato de fanatismo. Ela não renunciou a
pai, mãe, irmãos, irmãs e a tudo quanto tem, no sentido em que o divino
Mestre preceitua; ela deixou de cumprir o seu dever junto da família e
da sociedade, fugindo às lutas e às vicissitudes da vida humana e
social. O arrefecimento e o repúdio às afeições de família, conseqüentes
ao enclausuramento, são antes delito que virtude. Já dizia o apóstolo
João, sabia e judiciosamente: Se não amas a teu irmão que vês, como
amarás a Deus que não vês?
O
que Jesus pede não é o desafeto aos membros de nossa família; não é o
repúdio do lar, essa mansão sagrada onde se forjam as virtudes
fundamentais do Cristianismo; não é a abstinência de tudo o que nos
alegra, conforta e refrigera a alma; não é a privação do conforto, do
bem-estar e da independência material ou financeira; não é o
estrangulamento de todas as aspirações do melhor por que nosso “ser”
naturalmente anela, porque isso seria uma monstruosidade, seria a nossa
morte moral como efeito do embrutecimento, da abulia a que condenássemos
nosso espírito.
O
que Jesus requer dos seus discípulos é, como já ficou dito acima, a
coragem moral, a disposição de ânimo capaz de resistir a todas as
seduções do mundo, colocando acima de tudo, inclusive de nossos mais
santos afetos e da nossa própria vida, o ideal da justiça e de amor que
sua doutrina encerra e do qual ele mesmo é o símbolo e o exemplo.
Fonte:
Livro “Em Torno do Mestre” – Vinicius – Federação Espírita Brasileira
(Casa-Matér do Espiritismo) Ano de Edição: 1939 – páginas: 38 até 42.
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