sábado, 30 de agosto de 2014

Desprendimento dos Bens Terrenos A que bens terrenos que o Espírito se refere? Octávio Caúmo Serrano


No longo item 14,  do capítulo XVI de O Evangelho Segundo o Espiritismo, “Servir a Deus e a Mamon”, Lacordaire nos trouxe, em 1863, importante mensagem sobre o “Desprendimento dos Bens Terrenos”.

A quem bens terrenos ele se refere?

Habituamo-nos a raciocinar que somos um espírito encarnado e, portanto, subjugado ao mundo da matéria, extremamente apelatória, imediatamente vem-nos à mente que os bens terrenos são as casas, os carros, as roupas e a comida, entre outros de igual natureza.

Não há dúvida que esses bens exercem fascínio em todos os homens. Fazem parte das necessidades humanas: o conforto, a boa comida, a roupa bonita, a jóia que enfeita, porque nosso corpo é ainda com o que mais nos identificamos. Temos sido mais matéria do que espírito, característica inerente aos mundos de provas e expiações, onde a imperfeição domina os seus habitantes.

A prova do que afirmamos é que nunca se cultivou tanto a forma física. As pessoas estão artificializadas. Tudo nelas está ficando postiço, enxertado. Jovens já a partir de quinze anos, meninas e meninos, procurando “turbinar-se”, causando danos à saúde e não percebendo a efemeridade da juventude.

É difícil desprender-nos desses bens, porque mesmo quando nos explicam sobre esse tema, vem-nos a idéia de que para ser cristão é preciso fazer voto de pobreza – porque confunde-se pobreza com humildade -  e os valores do mundo são proibidos pelas Leis de Deus. Logo nos chega à mente as lições de Jesus quando disse ao moço que deveria vender tudo e segui-Lo para ter o reino dos Céus; ou quando disse que é mais fácil o camelo passar pela agulha do que o rico ir para o Céu.

Isso não faz sentido, porque se nos fizermos pobres materialmente passaremos a ser mais um fardo para a sociedade, onde já existe tanta miséria e desigualdade. E seu Deus deixa que cheguem às nossas mãos recursos que nos permitem dar empregos ou consumir os produtos dos que trabalham, nenhum mal existe nisso. Só há mal quando tentamos obter riqueza de maneira desonesta ou com danos ao semelhante.

Temos para nós, porém, que há bens terrenos mais difíceis de ser vencidos pelos homens que são aqueles ligados aos sentimentos. Falamos de poder, de vaidade, de beleza, de inteligência. Falamos ainda de competições. Não porque elas existam. Afinal são necessárias para que o homem trace objetivos e busque o sucesso. Mas porque não sabemos lidar com elas.

Observemos as competições de toda ordem. Para que dez por cento fique feliz, noventa por cento têm de sofrer, pela derrota e por ser ofendido pelo sadismo do vencedor. Fala-se tanto na paz do mundo, mas enquanto houver a ganância, a avareza, o egoísmo insaciável dos seres humanos, a paz será impossível. Não fogem a essa análise nem mesmo as religiões. Todas pretendem ter a verdade e não percebem que dividem em vez de harmonizar. No entanto, todas elas têm parte da verdade e estão, em processo evolutivo, interligadas. 

A proposta do Espiritismo de nos concitar ao desprendimento dos bens terrenos é mostrar-nos que somos antes espírito que matéria, porque material somos por um tempo e espiritual, seremos eternamente. Como os bens materiais mal administrados lesam o homem espiritual, se não aprendermos agora a valorizar os bens terrenos com equilíbrio, seremos escravos deles, mesmo após a morte. Os avarentos de hoje serão os obsessores de amanhã..

Não temos a ilusão de imaginar que esse quadro possa mudar dentro de alguns séculos. O progresso e o entendimento são muito lentos. É tudo pouco a pouco, um a um, até que todos compreendam que desprender do mundo é libertar-se de si próprio. Mas para nós espíritas, é mais fácil compreender essa orientação de Lacordaire, a mesma de muitos outros orientadores.

Se considerarmos toda a gama de bens terrenos, veremos que desprender de casas, e outros bens patrimoniais, é ainda mais fácil do que a mãe desprender-se do filho,  a esposa do marido, a irmã do irmão e o cidadão da sua pátria. Difícil ao homem desprender-se da vaidade, das raças, dos cargos, das posições, da importância que lhe dão no mundo. Vemos isso até na diretoria de agrupamentos espíritas, onde o dirigente faz da casa o “seu centro”. Precisa da autoridade de presidente. Precisa da importância.

A finalidade da reencarnação é ajustar o homem aos valores espirituais. É viver no mundo, sem ser do mundo, como ensinam os espíritos. É sair daqui melhor do que chegou. Se assim não for, a reencarnação de nada valerá. Portanto, devemos selecionar com critério quais são os bens que valem nossos maiores investimentos. Se pensarmos apenas nos que ficam na Terra, nada construiremos para o futuro. 

Tudo o que dissemos até aqui é comprovado ao vermos ricos tão infelizes quanto pobres. Uns, pobres, têm privações materiais. Outros, ricos, vivem a miséria espiritual. Se existe nos dias atuais tanta depressão causada pelo estresse da vida moderna, isso se deve à dificuldade do homem em desprender dos bens terrenos. Desprender não é relaxar. É administrar com sabedoria. E isto é o que nos tem faltado.

Sugerimos que leiam atentamente todo o item 14, do capítulo XVI de O Evangelho Segundo o Espiritismo, para compreenderem mais claramente o que fazemos na Terra.  


Desprendimento dos bens terrenos

14. Venho, meus irmãos, meus amigos, trazer-vos o meu óbolo, a fim de vos ajudar a avançar, desassombradamente, pela senda do aperfeiçoamento em que entrastes. Nós nos devemos uns aos outros; somente pela união sincera e fraternal entre os Espíritos e os encarnados será possível a regeneração.
O amor aos bens terrenos constitui um dos mais fortes óbices ao vosso adiantamento moral e espiritual. Pelo apego à posse de tais bens, destruís as vossas faculdades de amar, com as aplicardes todas às coisas materiais. Sede sinceros: proporciona a riqueza uma felicidade sem mescla? Quando tendes cheios os cofres, não há sempre um vazio no vosso coração? No fundo dessa cesta de flores não há sempre oculto um réptil? Compreendo a satisfação, bem justa, aliás, que experimenta o homem que, por meio de trabalho honrado e assíduo, ganhou uma fortuna; mas, dessa satisfação, muito natural e que Deus aprova, a um apego que absorve todos os outros sentimentos e paralisa os impulsos do coração vai grande distância, tão grande quanto a que separa da prodigalidade exagerada a sórdida avareza, dois vícios entre os quais colocou Deus a caridade, santa e salutar virtude que ensina o rico a dar sem ostentação, para que o pobre receba sem baixeza.
Quer a fortuna vos tenha vindo da vossa família, quer a tenhais ganho com o vosso trabalho, há uma coisa que não deveis esquecer nunca: é que tudo promana de Deus, tudo retorna a Deus. Nada vos pertence na Terra, nem sequer o vosso pobre corpo: a morte vos despoja dele, como de todos os bens materiais. Sois depositários e não proprietários, não vos iludais. Deus vo-los emprestou, tendes de lhos restituir; e ele empresta sob a condição de que o supérfluo, pelo menos, caiba aos que carecem do necessário.
Um dos vossos amigos vos empresta certa quantia. Por pouco honesto que sejais, fazeis questão de lha restituirdes escrupulosamente e lhe ficais agradecido. Pois bem: essa a posição de todo homem rico. Deus é o amigo celestial, que lhe emprestou a riqueza, não querendo para si mais do que o amor e o reconhecimento do rico. Exige deste, porém, que a seu turno dê aos pobres, que são, tanto quanto ele, seus filhos.
Ardente e desvairada cobiça despertam nos vossos corações os bens que Deus vos confiou. Já pensastes, quando vos deixais apegar imoderadamente a uma riqueza perecível e passageira como vós mesmos, que um dia tereis de prestar contas ao Senhor daquilo que vos veio dEle? Olvidais que, pela riqueza, vos revestistes do caráter sagrado de ministros da caridade na Terra, para serdes da aludida riqueza dispensadores inteligentes? Portanto, quando somente em vosso proveito usais do que se vos confiou, que sois, senão depositários infiéis? Que resulta desse esquecimento voluntário dos vossos deveres? A morte, inflexível, inexorável, rasga o véu sob que vos ocultáveis e vos força a prestar contas ao Amigo que vos favorecera e que nesse momento enverga diante de vós a toga de juiz.
Em vão procurais na Terra iludir-vos, colorindo com o nome de virtude o que as mais das vezes não passa de egoísmo. Em vão chamais economia e previdência ao que apenas é cupidez e avareza, ou generosidade ao que não é senão prodigalidade em proveito vosso. Um pai de família, por exemplo, se abstém de praticar a caridade, economizará, amontoará ouro, para, diz ele, deixar aos filhos a maior soma possível de bens e evitar que caiam na miséria. E muito justo e paternal, convenho, e ninguém pode censurar. Mas será sempre esse o único móvel a que ele obedece? Não será muitas vezes um compromisso com a sua consciência, para justificar, aos seus próprios olhos e aos olhos do mundo, seu apego pessoal aos bens terrenais? Admitamos, no entanto, seja o amor paternal o único móvel que o guie. Será isso motivo para que esqueça seus irmãos perante Deus? Quando já ele tem o supérfluo, deixará na miséria os filhos, por lhes ficar um pouco menos desse supérfluo? Não será, antes, dar-lhes uma lição de egoísmo e endurecer-lhes os corações? Não será estiolar neles o amor ao próximo? Pais e mães, laborais em grande erro, se credes que desse modo granjeais maior afeição dos vossos filhos. Ensinando-lhes a ser egoístas para com os outros, ensinais-lhes a sê-lo para com vos mesmos.
A um homem que muito haja trabalhado, e que com o suor de seu rosto acumulou bens, é comum ouvirdes dizer que, quando o dinheiro é ganho, melhor se lhe conhece o valor. Nada mais exato. Pois bem! Pratique a caridade, dentro das suas possibilidades, esse homem que declara conhecer todo o valor do dinheiro, e maior será o seu merecimento, do que o daquele que, nascido na abundância, ignora as rudes fadigas do trabalho. Mas, também, se esse homem, que se recorda dos seus penares, dos seus esforços, for egoísta, impiedoso para com os pobres, bem mais culpado se tornará do que o outro, pois, quanto melhor cada um conhece por si mesmo as dores ocultas da miséria, tanto mais propenso deve sentir-se em aliviá-las nos outros.
Infelizmente, sempre há no homem que possui bens de fortuna um sentimento tão forte quanto o apego aos mesmos bens: é o orgulho. Não raro, vê-se o arrivista atordoar, com a narrativa de seus trabalhos e de suas habilidades, o desgraçado que lhe pede assistência, em vez de acudi-lo, e acabar dizendo: "Faça o que eu fiz." Segundo o seu modo de ver, a bondade de Deus não entra por coisa alguma na obtenção da riqueza que conseguiu acumular; pertence-lhe a ele, exclusivamente, o mérito de a possuir. O orgulho lhe põe sobre os olhos uma venda e lhe tapa os ouvidos. Apesar de toda a sua inteligência e de toda a sua aptidão, não compreende que, com uma só palavra, Deus o pode lançar por terra.
Esbanjar a riqueza não é demonstrar desprendimento dos bens terrenos: é descaso e indiferença. Depositário desses bens, não tem o homem o direito de os dilapidar, como não tem o de os confiscar em seu proveito. Prodigalidade não é generosidade: é, freqüentemente, uma modalidade do egoísmo. Um, que despenda a mancheias o ouro de que disponha, para satisfazer a uma fantasia, talvez não dê um centavo para prestar um serviço. O desapego aos bens terrenos consiste em apreciá-los no seu justo valor, em saber servir-se deles em benefício dos outros e não apenas em benefício próprio, em não sacrificar por eles os interesses da vida futura, em perdê-los sem murmurar, caso apraza a Deus retirá-los. Se, por efeito de imprevistos reveses, vos tornardes qual Job, dizei, como ele: "Senhor, tu mos havias dado e mos tiraste. Faça-se a tua vontade." Eis ai o verdadeiro desprendimento. Sede, antes de tudo, submissos; confiai nAquele que, tendo-vos dado e tirado, pode novamente restituir-vos o que vos tirou. Resisti animosos ao abatimento, ao desespero, que vos paralisam as forças. Quando Deus vos desferir um golpe, não esqueçais nunca que, ao lado da mais rude prova, coloca sempre uma consolação. Ponderai, sobretudo, que há bens infinitamente mais preciosos do que os da Terra e essa idéia vos ajudará a desprender-vos destes últimos. O pouco apreço que se ligue a uma coisa faz que menos sensível seja a sua perda. O homem que se aferra aos bens terrenos é como a criança que somente vê o momento que passa. O que deles se desprende é como o adulto que vê as coisas mais importantes, por compreender estas proféticas palavras do Salvador: "O meu reino não é deste mundo."
A ninguém ordena o Senhor que se despoje do que possua, condenando-se a uma voluntária mendicidade, porquanto o que tal fizesse tornar-se-ia em carga para a sociedade. Proceder assim fora compreender mal o desprendimento dos bens terrenos. Fora egoísmo de outro gênero, porque seria o indivíduo eximir-se da responsabilidade que a riqueza faz pesar sobre aquele que a possui. Deus a concede a quem bem lhe parece, a fim de que a administre em proveito de todos. O rico tem, pois, uma missão, que ele pode embelezar e tornar proveitosa a si mesmo. Rejeitar a riqueza, quando Deus a outorga, é renunciar aos benefícios do bem que se pode fazer, gerindo-a com critério. Sabendo prescindir dela quando não a tem, sabendo empregá-la utilmente quando a possui, sabendo sacrificá-la quando necessário, procede a criatura de acordo com os desígnios do Senhor. Diga, pois, aquele a cujas mãos venha o que no mundo se chama uma boa fortuna: Meu Deus, tu me destinaste um novo encargo; dá-me a força de desempenhá-lo segundo a tua santa vontade.
Aí tendes, meus amigos, o que eu vos queria ensinar acerca do desprendimento dos bens terrenos. Resumirei o que expus, dizendo: Sabei contentar-vos com pouco. Se sois pobres, não invejeis os ricos, porquanto a riqueza não é necessária à felicidade. Se sois ricos, não esqueçais que os bens de que dispondes apenas vos estão confiados e que tendes de justificar o emprego que lhes derdes, como se prestásseis contas de uma tutela. Não sejais depositário infiel, utilizando-os unicamente em satisfação do vosso orgulho e da vossa sensualidade. Não vos julgueis com o direito de dispor em vosso exclusivo proveito daquilo que recebestes, não por doação, mas simplesmente como empréstimo. Se não sabeis restituir, não tendes o direito de pedir, e lembrai-vos de que aquele que dá aos pobres, salda a dívida que contraiu com Deus. - Lacordaire. (Constantina, 1863.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário