O
que notabilizou Kardec no trabalho de codificação da Doutrina Espírita foi o
bom senso. No estudo dos fenômenos mediúnicos, empregou o rigor científico.
Observou, analisou, experimentou - de maneira cautelosa e racional – toda a
fenomenologia espiritual. Sabiamente, e colocando à frente a inteligência
lógica, elaborou suas teorias, hipóteses, e teses, até atingir o consenso que
se traduz na conclusão. Deliberada e desapaixonadamente, empregou o juízo
crítico para comprovar os fatos mediúnicos que se desencadeavam.
Estudioso
desapaixonado – imprimiu um tom de imparcialidade como pesquisador lúcido –
elaborou uma seqüência lógica e racional, e que estratificou o corpo
doutrinário, preparando-o para a prospecção filosófica ampla que a Doutrina
oferece. Sensível e penetrável – deixou-se envolver pelos exemplos vividos pela
figura humana e soberanamente humanística de Jesus.
Em
momento algum vimos Kardec impregnado pela paixão sentimentalista e cega.
Tampouco captamos nele uma emotividade doutrinária neurótica ou abstracionista.
Muito menos a idéia presunçosa de ser o detentor da verdade. Jamais agiu de
forma a catequizar quem quer que seja. Não! Absolutamente! Nele não havia o
desejo de atrair adeptos através de proselitismo, que é, indiscutivelmente, uma
forma de fanatismo. Ele andava à procura da verdade dos fatos. Apenas a verdade
cristalina o interessava.
Não
é assim tão fácil decodificar Kardec. Interpretar as palavras de Kardec é muito
difícil porque exige uma conduta intelectual de atenção e perspicácia. Antes de
tudo, necessário se torna “aprender a aprender” Kardec, e a “compreender a
compreender” Kardec. Ele representa o estágio de consciência do espírita
maduro. Isso porque acreditamos que todo espírita passa por três fases durante
o percurso pela Doutrina. Essas fases representam o tipo de interação do
espírita com o espiritismo. Se não vejamos e analisemos friamente. A primeira
fase é marcada por um comportamento um tanto quanto “infantil”. O recém-chegado
começa a frequentar um centro e recebe as instruções necessárias e básicas. A
segunda fase é definida como sendo a fase da “adolescência” espírita. O
integrante da Doutrina está entumescido e maravilhado pelo que a Doutrina
oferece. E a terceira fase, e mais difícil de ser atingida, é aquela
caracterizada pela “maturidade” espírita. Nessa fase, o militante da doutrina
de Kardec passa a praticar um espiritismo maduro, que tem como características
o bom senso e o juízo crítico de Kardec, naturalmente.
Segundo
palavras do psicólogo e epistemiologista suíço, Jean Piaget: “O desenvolvimento
psíquico, que começa quando nascemos e termina na idade adulta, é comparável ao
crescimento orgânico: como este, orienta-se, essencialmente para o equilíbrio”.
Portanto,
embasado nesse cientista, asseveramos que o espírita maduro passa a aceitar
certas coisas, ou passa a discordar de certas coisas que ocorrem no movimento
doutrinário (não na Doutrina Espírita), porque usa, de maneira reflexológica, o
juízo crítico, que é, indubitavelmente, uma expansão de sua consciência
inteligente. Sendo assim, se alguém psicografa ou externa uma opinião, ou uma
idéia, ele a analisa porque o seu raciocínio lógico e formal de homem, criado à
imagem e semelhança de Deus, o ativa a promover reações bioquímicas e
bioenergéticas no campo neuronal, através do tálamo, do hipotálamo e do sistema
límbico. Em suma, a sua massa encefálica contida na caixa craniana é acionada,
e o seu espírito, através dela, processa uma resposta que é fruto exclusivo da
utilização do crivo da razão. E o que é razão? É a fé raciocinada. É a fé
assimilada, metabolizada, dando origem a um produto da própria inteligência
humana.
Para
isso, não é preciso ser “intelectual”. É preciso, apenas praticar o espiritismo
– sem esquecer de usar o juízo crítico.
Esse
procedimento é muito importante, porque evita que os médiuns sejam verdadeiras
marionetes dos presidentes de centro. Impede que médiuns e freqüentadores de
centro sejam marionetes dos chamados espíritos protetores, que, a nosso ver,
“às vezes”, são superprotetores e impedem que o indivíduo decida por si mesmo
coisas que podem ser resolvidas através do raciocínio, apenas. O bom senso
evita que se pratique um “espiritismo patológico”, no qual o médium, ou o
freqüentador, acredita mais nos guias ou nas pessoas do que em si mesmo. É preciso
reconhecer que isso acontece no movimento doutrinário: a isso chamamos
“síndrome da despersonalização”, isso porque o indivíduo se despersonaliza,
isso é, deixa de ser ele para ser outro.
É
como se ele incorporasse a personalidade de outra pessoa em si. Isso é
tornar-se alienado em pleno mundo, onde as transformações tecnológicas,
econômicas e sociais transcorrem aceleradamente de minuto a minuto.
Salientamos
que a função do espiritismo não é a de nos
adentrar para conviver com os “guias espirituais”, tampouco “santificar” a quem
quer que seja. A real função da Doutrina Espírita é ajudar o homem a encontrar
a si mesmo. E o homem só encontra a si mesmo, vivendo no mundo dos encarnados
na luta do dia-a-dia, no meio social; lidando com as alegrias e tristezas;
criando garra, tenacidade, coragem, esperança e, sobretudo, fé. Fé em Deus. Fé
em si mesmo. E fé em companheiros espirituais que “poderão” auxiliá-lo “se for
permitido pelo Pai”. É preciso meditar, calmamente, nessas palavras contidas
nesse parágrafo. Se houver dúvida, convém relê-las. A função do espiritismo é a
de preparar o homem para a convivência dinâmica na sociedade – não como um ser
mitificado – mas na condição de um indivíduo atuante e operante em todos os
setores da atividade humana. É necessário muita cautela, porque o
sentimentalismo religioso exacerbado embota o raciocínio e cria espíritas
repletos de esteriótipos, que o colocam em distorção com a realidade social. A
divagação filosófica mal orientada, ou levada ao pé da letra, aliena o indivíduo
e o coloca em confusão quanto ao que é real e o que é ideal.
Por
outro lado, a colaboração intelectual acadêmica é de grande valia para a
Doutrina Espírita e, em especial, para o movimento espírita, desde que não haja
a presunção de transformar o centro espírita numa universidade, ou desde que
não exista a intenção ou a presunção de promover uma dicotomia intelectual no
centro espírita em detrimento do relacionamento sociológico entre os
integrantes do grupo. Em suma,afirmamos que o que realmente importa é o desejo
de aprimoramento, sobretudo moral. Evidentemente, subestimar o estudo ou deixar
de adequá-lo à realidade do mundo, através de uma metodologia moderna e
condizente com o grau de cultura dos integrantes do grupo é, realmente, um erro
clamoroso! Espiritismo não é só evangelho confortador. “Espiritismo é, também,
ciência e ciência é fé raciocinada e comprovada laboratorialmente. Ciência só é
ciência se aprovada pelo juízo crítico”.
Enfatizamos
que o iletrado e o intelectual são todos colaboradores idênticos. O espiritismo
não faz distinção cultural, apenas, tanto um quanto o outro, precisa usar o bom
senso, o que não se adquire numa universidade. É uma faculdade imanente no
homem, ou, pelo menos, deve ser uma característica dos homens lúcidos portadores
de uma visão abrangente do horizonte.
Portanto,
o modus operandi do comunicador espírita (orador,
expositor, tribuno, presidente de centro, etc.) deve metamorfosear-se para um
espiritismo dinâmico e prático, atual e concreto. Hoje em dia não mais há lugar
para espíritas sectários, radicais e pragmáticos. Um ecletismo sóbrio e
inteligente é preferível a um radicalismo polarizante e anacrônico. O espírita
deve ser menos angelical e mais natural. Aberto, sociável e social, porque, se
assim ele não for, correrá o risco de ficar obsoleto, desusado, “defasado” no
tempo e no espaço.
A
função social do espírita extrapola o trabalho assistencial aos carentes, quer
através do prato de sopa ou da campanha do quilo. A função social do espírita
não é apenas o de dar passes, fazer palestras etc.
O
espírita maduro, ou amadurecido, é aquele que procura exercitar o “amai-vos uns
aos outros” de maneira não surrealista, não mística, mas com absoluta
naturalidade e espontaneidade de uma pessoa normal. O importante é cada um se
esforçar para descobrir a si mesmo e, nesse particular, os dirigentes têm uma
função importante – da qual não podem e nem devem fugir. Devem orientar os
seguidores da Doutrina a caminhar com seus próprios pés. Isso, sim, é
espiritismo!
O
espiritismo de Kardec é aquele que lembra ao indivíduo que ele tem que enxergar
com seus próprios olhos. Ouvir com seus próprios ouvidos. Falar com seu próprio
aparelho fonador. Movimentar com seu próprio corpo. Sentir com o diapasão da
própria sensibilidade.
Trabalhar,
lutar, sofrer – às vezes por si e em si mesmo: isto é – em silêncio, dando
assim, ao espírita, uma postura de equilíbrio pessoal e sensatez. O importante
é ensinar o espírita a lutar – limpa e honestamente – usando de energia, às
vezes; da coragem, sempre; da fé em todos os momentos; e da prática do
evangelho de Jesus.
Espiritismo
não é isolacionismo. O “estar no mundo” Jasperiano do espírita deve ser
verdadeiramente consciente e coerente com a liberdade responsável, e com o
espírito operante e atuante, participativo e convicto de que a certeza de sua
fé está voltada para uma atitude preponderantemente interior. Isto porque o
trabalho interior, que cada qual deve operar em si, adquire valor real e
substantivo a partir do momento em que é executado em silêncio. Espiritismo é
ação em silêncio. É juízo crítico.
José
de Mello Filho
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